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Entrevista | João Paulo Miranda Maria

O cineasta brasileiro João Paulo Miranda Maria concedeu uma entrevista exclusiva para o Cineplayers. Entre os assuntos abordados, o diretor do recém lançado Casa de Antiguidades comentou sobre a perpetuação do racismo na sociedade brasileira, as dificuldades enfrentadas na realização de seu primeiro longa-metragem, sua reação às primeiras críticas e a atual crise no cinema brasileiro. Leia abaixo a entrevista na integra.

Cineplayers: Qual foi a principal inspiração para a realização do filme?

João Paulo Miranda Maria: Tudo surgiu como num sonho, onde me via mais velho dentro de uma casa abandonada. Ali, estranhamente, encontrava objetos conectados ao meu passado e de ancestrais, até começar a encontrar objetos que não mais reconhecia ou sabia suas origens… Dali, em 2015, comecei a escrever o roteiro, já com a estrutura da historia, que depois desenvolvi em duas residências artísticas que tive na França.

Cineplayers: Como dito anteriormente, a idealização do longa-metragem teve início em meados de 2015, antes de entrar em voga o debate sobre a negação do racismo na sociedade brasileira. Nesse breve período, quais mudanças acredita que houve na forma como o povo brasileiro passou a lidar com a desigualdade racial no país? E como a obra dialoga com o Brasil de 2020?

João Paulo Miranda Maria: Desde 2015 já havia consciência de um movimento conservador crescente. Sou do interior de São Paulo e via isso ao meu redor, antes dos acontecimentos políticos recentes. E desde meus trabalhos anteriores, como os curtas Command Action, A Moça que Dançou com o Diabo e Meninas Formicida, já havia meu interesse de retratar personagens ignorados e deixados à margem da sociedade. Os meus heróis sempre vieram deste universo à margem do que a sociedade julga ser mais bonito ou correto; me interesso sobre suas historias e conflitos. Neste caminho, vejo que meu interesse de anos, junto à esta consciência, trouxe um filme que toca numa ferida profunda do Brasil, que não começou hoje e infelizmente não parece ter um fim tão próximo.

Cineplayers: Seu filme retrata de maneira visceral a repressão advinda do colonialismo europeu perante à cultura e à ancestralidade do povo afro-brasileiro. O que o motivou a abordar tal assunto?

João Paulo Miranda Maria: Primeiro penso na formação deste pais, sempre subordinado à interesses estrangeiros, do qual ignora ou deixa de valorizar sua própria cultura e história. O filme em si retrata uma realidade que é verdadeira, de uma região, mas eu nunca estive interessado em apontar especificamente um tipo de colonialismo, mas utilizar da metáfora para ilustrar a falta de um olhar ao brasileiro em si. Um sentimento de vira-lata que valoriza mais o que é de fora.

Cineplayers: Mesmo tendo poucas falas, Antônio Pitanga dá vida a Cristovam, um homem negro que tem sua existência anulada por uma comunidade eugenista localizada na região sul do país. Tendo em mente tamanho desafio, como foi a experiência de dirigir um ator veterano, cujo olhar e expressão corporal foram os principais recursos utilizados para transmitir as emoções do personagem?

João Paulo Miranda Maria: Eu sempre imaginei o Antônio Pitanga neste papel, porém, ao ler o roteiro, poucos apostariam que ele era o ator ideal. Eu nunca o convidei como uma simples homenagem, mas como um desafio pessoal, fazer algo que surpreenderia a todos. Para mim, o mais importante de Pitanga é o peso da Historia que ele carrega e que podemos sentir em seu olhar. Eu precisava evocar este sentimento, o que chamei de ”sangue nos olhos”. Conversava muito com ele, pois sempre vejo meus atores como pensantes e quero muito mais flagrá-los em processo do que trazer um perfil óbvio. Quando preciso mostrar força, preciso ter fragilidade; demonstrar um certo processo ainda indefinido e imprevisível em cena. Foram muitas conversas e provocações para chegar naqueles instantes onde não precisava de palavras ou muletas de expressão para dizer quem era Cristovam. Foi uma grande honra ter feito meu primeiro longa com ele, foi uma espécie de batismo para mim.

Cineplayers: Após dirigir alguns curtas que obtiveram um certo destaque na cena, quais os desafios enfrentados durante a realização de seu primeiro longa-metragem?

João Paulo Miranda Maria: O maior desafio foi manter a mesma liberdade de arriscar como fiz em meus curtas anteriores. Naquele momento, eram produções de baixíssimo ou zero recursos, do qual havia criado uma maneira artesanal e de total liberdade estética. Sempre almejei um cinema de autor, com a mesma força das grandes vanguardas, e nunca quis fazer um cinema de bom gosto para agradar o público. Sempre vi cinema como arte e quando as pessoas se deparam ao mercado é fácil mudarem seus pontos de vista e terem medo de arriscar esteticamente. No meu caso, eu precisava manter este mesmo risco, independente da estranheza do público, pois o que busco é algo mais alto que um mero entretenimento. Tive a sorte de meus produtores e equipe apostarem nesta minha visão, que à primeira vista é difícil de compreenderem, pois é algo pessoal e singular, fora das regras. Para mim, foi o desafio de argumentar para profissionais com anos de carreira o porquê de fazerem algo completamente novo e diferente do que estavam acostumados.

Cineplayers: Como reagiu às inúmeras avaliações positivais vindas da crítica especializada que, majoritariamente, teceu elogios ao seu trabalho na direção e a obra como um todo? Havia expectativas para que a produção fosse indicada para representar o Brasil numa possível disputa pelo Oscar?

João Paulo Miranda Maria: Como disse, foi um risco para alguns apostar em algo diferente, porém eu tinha dentro de mim argumentos e questões pessoais profundas envolvidas; há uma alma ali verdadeira e corajosa. Sabia que o filme era ousado e que iria despertar o interesse daqueles que veem cinema como arte e que também iria incomodar muitos. A certeza veio com a seleção para o Festival de Cannes, que num ano normal estaria em sua competição oficial (único latino-americano) e depois em Toronto, San Sebastian e outros festivais importantes que estão agora voltando à acontecer. Confesso que fiquei mais surpreso quando a revista Variety fez uma pesquisa com grandes críticos internacionais, chegando na lista de apostas ao Oscar e incluindo o filme entre os 5 prováveis nomeados. Nunca imaginei que, ao mirar um cinema de arte, de linguagem arriscada, despertaria interesse da grande indústria de Hollywood. Além desta lista, ele já ganhou prêmio nos EUA, no Festival de Chicago, um dos mais antigos de lá.

Cineplayers: Atualmente, o cinema nacional vem enfrentando uma séria crise devido à ausência de políticas públicas de incentivo por parte do atual governo. O presidente Jair Bolsonaro inclusive já declarou ser contrário a produções que, segundo ele, fazem “ativismo”. Em meio a este cenário adverso, qual a importância de se produzir obras voltadas para causas sociais?

João Paulo Miranda Maria: Acompanho com muita tristeza estas posições politicas contra nossa cultura e arte. Eu, como realizador e artista, não consigo imaginar cinema sem engajamento social. Para mim é crucial que meu filme represente a sociedade, denunciando principalmente seus erros e conflitos. Eu não consigo conceber um filme que apenas agrade ou trate de forma superficial problemas profundos da sociedade. Não vivemos numa sociedade perfeita, justa ou igualitária. Por isso não tenho o menor interesse de fazer um filme “belo” tentando ser positivo. Estamos diante de muitos problemas a serem resolvidos como sociedade e como seres humanos. Antes de querer desfrutar um paraíso longínquo, preciso enfrentar os nossos conflitos e expressá-los em meu cinema. Só a partir deste enfrentamento dos problemas que poderemos mudar esta sociedade.

Cineplayers: Por fim, qual mensagem gostaria de compartilhar com o público que, por ventura, venha a ter um certo preconceito com o cinema brasileiro?

João Paulo Miranda Maria: A base de qualquer preconceito é a falta de conforto. As pessoas de modo geral preferem viver numa bolha de conforto, aonde assistem o que lhe agradam, pois justamente têm medo de enfrentar os seus dilemas ou de seu país. É mais fácil fugir do que olhar nos olhos de seus próprios demônios. Mas preciso lembrá-las que a historia da arte nos ensina que as grandes obras fazem justamente o caminho inverso do conforto, que vem para quebrar ilusões. Isto ficará mais claro com o tempo e maturidade de cada espectador. Se vocês ainda querem apenas se distrair eu não indicaria meu filme, por exemplo.

Comentários (1)

André Araujo | terça-feira, 15 de Dezembro de 2020 - 10:13

A resposta dele para a última pergunta é aquilo que deve ser o norte para qualquer apreciador de arte.

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