Entrevista sobre o filme A Voz de Deus
O Brasil mudou — e seus púlpitos também. Cada vez mais conectados, templos e redes sociais agora compartilham o mesmo palco, onde crianças pregadoras acumulam seguidores e multidões. É nesse cenário curioso e complexo que se desenrola A Voz de Deus, novo longa de Miguel Antunes Ramos, que fez sua estreia nacional na Mostra Competitiva Brasileira do 14º Olhar de Cinema, em Curitiba.
Na história, acompanhamos dois jovens pastores em momentos bem diferentes da fama e da fé: Daniel, que já foi uma estrela mirim das pregações, e João, que hoje brilha como influencer evangélico com mais de um milhão de seguidores. Após um caloroso debate com o público e imprensa presentes no festival, nosso editor Rafael Oliveira conversou com o diretor Miguel Antunes Ramos e com Daniel Pentecoste, ator que dá vida a esse ex-mirim em crise, sobre bastidores do filme, infância exposta e a mistura explosiva entre fé, redes sociais e identidade.
Foto de Walter Thoms
ENTREVISTA
Rafael (Cineplayers): Miguel, o que te motivou a explorar especificamente esse fenômeno das crianças pregadoras no Brasil? Como surgiu a ideia para que este tema se tornasse o seu filme?
Miguel: Eu acho que surgiu, primeiro, de uma certa percepção quando eu estava começando a pensar em 2016. Um pouco de surpresa com os rumos que o Brasil estava tomando, que era uma coisa que eu não imaginava. E eu sentia que tinha um certo mundo pra mim ainda desconhecido. E eu estava um pouco desconcertado, e acho que eu queria fazer filmes como uma forma de olhar para mundos que são distantes de mim. Então eu acho que começou um pouco daí. Aí eu me deparei pela primeira vez com esse mundo, especificamente, por matérias na imprensa. E aí eu fui me aproximando. E nesse percurso eu conheci o Daniel. E acho que me interessei muito pelo momento que ele estava vivendo. Quer dizer, ele que tinha sido essa criança pegadora por tantos anos e que tava um pouco numa certa encruzilhada de que rumo seguir. Mas ele estava meio em crise com a própria
voz, digamos. Que não era a própria, né?
Rafael (Cineplayers): E o filme acompanha tanto Daniel quanto o João em momentos muito distintos da vida deles. Da fama, na verdade, já que eram dois jovens já estabelecidos no ato da pregação, do evangelizar. O que vocês acham que esse olhar pro passado dessas duas crianças diz sobre o Brasil atual, especialmente na relação entre fé e redes sociais?
Miguel: Eu acho que o Brasil atual... Eu acho assim, quando eu entendi, eu estava filmando ele, eu acho que eu entendi que o filme era sobre uma mudança geracional. Apesar de ter algo cíclico, eu comecei a filmar ele (Daniel) na saída desse círculo. O João já vai chegar nessa saída, né? Por isso que eu quis terminar com ele no touro mecânico, porque eu não sei o que ele vai fazer da vida dele, acho que tá em aberto. Eu acho que o que eu queria dizer com o filme é que tem um ciclo, mas o país mudou, o mundo mudou, né? Então, eu acho que o que ele fala do Brasil de hoje. Eu acho que o João vive um mundo mais difícil do que o que o Daniel viveu, que é um mundo contemporâneo digital, né? Eu acho que o Daniel, ele era uma criança analógica. Ele era uma criança que vendia DVD. (4:11) Então, vendia DVD, gravava DVD uma vez por ano. O João, ele tem que ser a mesma imagem o tempo todo. Como a gente, quando lá no Instagram. Então, eu acho que quando o filme fala do Brasil contemporâneo, talvez seja vinculado a isso. Quer dizer, os desafios que o mundo digital impõe, que é onde todo mundo tem que performar a própria imagem, o tempo inteiro.
Daniel: Eu concordo plenamente com Miguel. Quando eu terminava de pregar, antes do Miguel filmar, eu voltava para minha vida normal. Então, eu brincava e eu não tinha que prestar conta da minha imagem para ninguém. Talvez isso tenha culminado em eu não ter ficado famoso. E o João, ele termina o puto. Ele tem um compromisso muito maior com a imagem dele, que ele tem que prestar. E falando do Brasil atual, eu acho que é o que a gente vive hoje. A mídia em excesso hoje, inclusive a gente vive em uma era de IA, de imagens que eu, pessoalmente, acho que idiotiza a população um todo, essa dependência da era digital. A gente não vive mais sem. Infelizmente, é a realidade que a gente enfrenta.
Rafael (Cineplayers): E, Dani, quando Miguel decide começar a te filmar, ele já chega num momento em que tanto você quanto João já eram crianças superexpostas. Então, quando Miguel decide te filmar, fazer o filme, existe mais uma camada de exposição aí. Para você, como é que foi lidar com mais essa camada?
Daniel: Foi difícil, porque eu não sabia o que era um documentário, Eu sempre fui da arte. Então, sempre ouvi muita música boa, sempre assisti documentários, sempre li bons livros, mas eu não entendia como a minha vida seria documentada pelo Miguel. Eu estava acostumado a ser filmado em cima do púlpito, pregando. Raramente era filmado no meu momento de lazer. Mas, quando Miguel chega, eu acho muito diferente, gera um primeiro desconforto, porque ele entra na minha vida mesmo. Ele senta comigo, do meu lado, eu estou comendo e tem uma câmera. Então, assim, essa parada foi difícil.
Miguel: E eles já eram muito filmados, né? Então, quando eu fui filmar, ele tinha, sei lá, 10 matérias televisivas. Então, eles estavam acostumados a ser filmados. Eu acho até que, quando eu filmei em 2017, que é o comecinho do filme, eles até falam com a câmera, para eles eram registros que estavam totalmente naturais.
Daniel: E hoje a minha relação com o Miguel transpassa o filme. A gente continua sendo amigo. Porque ele nos deixou muito à vontade. E a gente tinha que tomar muito cuidado. Porque hoje eu falo o que eu quero, mas na época, eu tinha que tomar muito cuidado, porque eu não podia repercutir de uma forma que nos atrapalhasse de viver depois. Então, o medo maior era esse. Só que o Miguel sempre nos deixou muito confortáveis.
Rafael (Cineplayers): Nós falamos aqui sobre como você, Daniel, era analógico e como o João era mais digital, então toda essa questão também deve ter influenciado a estética e narrativa do filme, não é?
Miguel: O que eu gosto no documentário é que você não tem que saber para onde você tá indo. Porque ficção é isso, né? Você tem que imaginar uma cena e escrever o roteiro, saber o que você vai fazer. Eu gosto do documentário porque você vai entendendo o mundo conforme ele acontece, né? Como enquadrá-lo. Então quando eu comecei em 2017, não existia isso, eu não imaginei que isso era um assunto. Mas conforme eu fui fazendo o filme, eu fui me aproximando (12:33) do João, eu fui filmar ele e ele é um Instagrammer. A vida dele é essa. Então, isso é um assunto do filme, né? Não é porque eu quero que seja. É porque é. Isso se instaurou naturalmente no filme. E aí, uma vez que instaurou, eu tô fazendo dois retratos, né? Um retrato de um personagem e um de outro. E acho que é isso. O João, ele é um youtuber, um Instagrammer. E também, eu confesso que eu sou fascinado por isso. Eu achei fascinante filmar. Então, casou com esse interesse meu também. Mas é a vida deles, né? É o que eles são profundamente. Não tinha como deixar de fora.
Rafael (Cineplayers): E Dani, teve alguma cena que foi mais desafiadora para você filmar? Algum momento que você tenha pensado “eu queria que essa câmera não estivesse aqui agora.”
Daniel: Na verdade, no segundo quando mostra o registro da minha vida lá em São Paulo, tem os meus filhos partindo, né? E aquilo foi registrado, aquilo sempre vai estar comigo, né? E no momento eu dou uma chorada, você tenta segurar, né? Porque eu sou chorão. E no filme eu tento dar aquela disfarçada, mas assim, tava lá e tem esse registro, né? Pra mim, hoje, é muito bonito de ver. É um momento difícil da vida, mas hoje a gente olha e vê que tá tudo bem, passou e eu sou grato por essas filmagens.
Miguel: Mas eu acho que essa é uma coisa que é importante destacar, quando a gente se reencontrou, o Daniel tava muito aberto pra entender e até pensar junto como era esse retrato dele e como ele terminava dentro da vida que ele tinha, porque acho que muita gente poderia não ter querido gravar aquele momento final, porque ele tava numa situação difícil. E quando a gente perdeu o contato na pandemia, quando voltou, ele estava numa situação difícil, ele estava tentando morar em São Paulo, batalhando uma vida que tava difícil, morando de uma forma precária, que está um pouco no filme. E acho que ele foi muito aberto, era um momento duro que ele estava passando e acho que ele foi muito aberto.
Rafael (Cineplayers): Para encerrar, como vocês esperam que o público, que assistiu no Olhar de Cinema, leve o filme com eles?
Miguel: Eu gostaria que levassem, talvez, uma reflexão sobre essas duas vidas tão diferentes nessa passagem geracional. Porque eu acho que a gente tá passando de um pro outro, do analógico para o digital. A gente saiu de um lugar e tá chegando em outro, e acho que eu talvez quisesse proporcionar uma reflexão sobre os desafios desse mundo contemporâneo.
Daniel: Falando do meu lugar como cristão protestante, eu espero que as pessoas do festival e outras pessoas entendam que a fé não é chata, a fé não prende, a fé não mata. O próprio Cristo não mandou matar ninguém. Eu gostaria que as pessoas entendessem que o estereótipo do crente brasileiro, que em alguns momentos até se confunde com um coach, tem dia que a gente não sabe se é um pastor que tá falando, se é um coach, isso não é a realidade do que eu acredito que seja o evangelho. Eu acredito que o evangelho fala muito sobre o amor, fala muito sobre a dádiva de estar junto, de abraçar aquilo que é diferente. Eu acho que Jesus fazia isso, e como um cristão, eu espero que as pessoas vejam que tem crente diferente, que não tá aqui pra julgar, pra massacrar, para discriminar, mas que tá aqui pra amar e pra conversar, apesar das diferenças.
Entrevista feita no Cine Passeio, em Curitiba, durante o 14 Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba.
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