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5 fatos que comprovam: Ad Astra é o Apocalypse Now espacial!

Tive a primeira oportunidade de conversar com Rodrigo Teixeira em março de 2016, durante o antigo RioContentMarket (hoje intitulado Rio2C). O produtor de O Cheiro do Ralo (2006), Abismo Prateado (2011) e Heleno (2011) iniciara uma carreira de respeito em Hollywood, com cineastas independentes de relevância — como Ira Sachs (O Amor é Estranho, 2014), Gaspar Noé (Love, 2015), Noah Baumbach (Frances Ha, 2012, e Mistress America, 2015) — e um estreante promissor: Robert Eggers, de A Bruxa (2015). Eu partia do sucesso dessa sofisticada obra de horror (que também renderia polêmicas, quando a crítica decidiu batizar filmes de gênero com formalismos do cinema de arte com o rótulo “pós-horror”) para questioná-lo sobre futuros projetos. E fiquei espantado com sua ambição. Ele citara muitos trabalhos de muito potencial com muita gente de muito talento. Minha maior tristeza em não publicar essa entrevista (cuja gravação se perdeu e as anotações eram esparsas) dizia respeito a um projeto ainda inédito: Blood on the Tracks, baseado no álbum homônimo de 1975 de Bob Dylan.

A carreira de Rodrigo Teixeira estourou nesses três anos. Sua filmografia esbanja cada vez mais quantidade, qualidade e versatilidade. O Prêmio da Academia de roteiro adaptado para Me Chame Pelo Seu Nome (2017) aumenta a confiança de uma indicação brasileira na categoria de longa-metragem internacional no Oscar 2020 para A Vida Invisível (vencedor da Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes 2019). O filme de Karim Aïnouz divide a caixa de joias desse ano profícuo de Rodrigo Teixeira com o novo longa-metragem de Robert Eggers, O Farol, estrelado por Willem Dafoe e Robert Pattinson; Wasp Network, thriller do diretor francês Olivier Assayas com Wagner Moura e grande elenco; e com o espetacular Ad Astra - Rumo às Estrelas, drama espacial que Rodrigo Teixeira diz ser baseado no clássico de guerra Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola.

De fato. A obra tem a marca autoral de seu diretor e roteirista, o cultuado cineasta James Gray. Vide sua força motriz: o conflito familiar entre o Major Roy McBride (Brad Pitt) e seu pai, o também astronauta Clifford McBride (Tommy Lee Jones), que nunca mais veria após desaparecer nos confins do sistema solar. O desfecho de Ad Astra encaminha uma resposta direta ao filme anterior de Gray, Z: A Cidade Perdida (2016), no qual o explorador Percy Fawcett (Charlie Hunnam) contamina o filho Jack (Tom Holland) com sua obsessão expedicionária pela Amazônia. Até lá, porém, a longa jornada de Roy contém fortes paralelos com a aventura do Capitão Benjamin L. Willard (Martin Sheen) pela selva do Vietnã em busca do Coronel Walter E. Kurtz (Marlon Brando) em Apocalypse Now. Abaixo, você confere cinco semelhanças entre esses dois grandes filmes, além de um aspecto fundamental que os difere — além de um ser ambientado na Terra e o outro, no espaço, claro!

A trama

Um dos grandes ônus de se escrever críticas assim que se assiste ao filme é não conceder o devido tempo de reflexão que certas obras merecem. Rodrigo Teixeira vinha dizendo há tempos que Ad Astra se tratava de uma mistura de Apocalypse Now com 2001: Uma Odisseia no Espaço — e eu simplesmente apaguei essa informação da minha mente enquanto assistia ao seu novo filme. Terminada a crítica, me deparo com uma entrevista do produtor brasileiro, vejo essa comparação e vêm, de uma só vez, todas as similaridades entre as obras. A começar pela história. Assim como Willard, Roy é convocado para uma missão suicida em busca de um oficial de altíssima patente que ameaça a soberania americana. Os dois protagonistas são homens hesitantes em uma missão secreta. E ambos enfrentam problemas quando embarcam em um barco e um navio formado por tripulantes entrosados entre si e pouco preparados para a perigosa exploração que seguem rio acima ou espaço afora. Enfim, até o fim, as ressonâncias entre as duas histórias são constantes.

Road movie sem estradas

Filmes de estrada independem da estrutura física viária que os designa. Um rio no Vietnã e um trajeto da Terra até Netuno são equivalentes perfeitos. E ambos, em Ad Astra e Apocalypse Now, representam recortes espaciais e temporais fundamentais na transformação interna de Willard e Roy, respectivamente. São dois filmes de silêncios constantes tão ou mais expressivos que as cenas de ação que os intercalam. Essas sequências, que tão bem sublinham a perturbação psicológica dos personagens, se alternam entre a tensa introspecção e rompantes em que eles nada dizem, mas exprimem essa inquietação de forma angustiante. As viagens existenciais de ambos têm uma interferência externa decisiva: as Forças Armadas. O clímax desses dois road movies ocorre quando os protagonistas enfrentam pares militares que viveram as mesmas angústias derivadas de um serviço insalubre prestado aos Estados Unidos.

Críticas à política norte-americana


A Guerra do Vietnã foi um os motivos de maior tensão na conturbada década de 60 do século passado nos Estados Unidos. O conflito começou como mais uma guerra por procuração da Guerra Fria travada entre EUA e União Soviética, até que os norte-americanos — receosos de que o Vietnã se convertesse ao comunismo — começaram a enviar tropas para a selva vietnamita. A morte de jovens e a cobertura das crueldades praticadas no país asiáticos virou a opinião pública contra os Estados Unidos. Apocalypse Now é um dos grandes filmes que representam como o conflito foi sangrento e o Estado, irresponsável em financiar uma investida que matou e enlouqueceu seus compatriotas. Ad Astra, por sua vez, projeta 50 anos no futuro como será a exploração interplanetária dos Estados Unidos: predatória, voltada para o consumo desenfreado, destruindo os recursos dos planetas que ocupar, pois assim é a sua atuação na Terra em 2019. A crítica ambiental é clara, ainda mais em tempos de negação da ciência pela figura grotesca de seu atual presidente, Donald Trump. A posição é extensiva, é claro, para Jair Bolsonaro e quaisquer outros líderes mundiais que rejeitem um ponto pacífico como o aquecimento global, por exemplo, em nome de um capitalismo inconsequente.

Clifford é o Coronel Kurtz


Se você não viu Ad Astra e ainda está lendo esse texto, pule para o próximo item. Agora é hora de spoilers! Porém, não há nada a interpretar além do que se vê claramente nos filmes: Clifford e Kurtz são dois homens que enfrentam situações traumáticas a serviço dos Estados Unidos (seja o horror da guerra, sejam a violência da gravidade e a solidão do espaço) e enlouquecem! Eles afundam nas sombras e, solitários, se tornam indivíduos cruéis. Indivíduos comuns que se tornam homicidas impiedosos. Ou melhor, duas figuras de gênio privilegiado! Tanto que desenvolvem as próprias teorias sobre a civilização e a humanidade. O que torna os dois personagens mais perigosos e fascinantes é o fato de suas conclusões terem fundamento e lapsos de brilhantismo (algo como o que Thanos faz em Vingadores: Guerra Infinita e Vingadores: Ultimato) — o radicalismo deles é o divisor da linha tênue entre a genialidade e a loucura. Também há semelhanças entre a adoração divina pelo Coronel Kurtz e o fato de tratarem Clifford como um herói. Da mesma forma que Kurtz se vê como um deus, Clifford se equipara ao perder a fé na raça humana e lançar ondas de energia de escala interplanetária (e de impacto mortal) sobre a Terra.

Produções conflituosas

Rodrigo Teixeira tem sido muito franco, em entrevistas recentes, ao falar sobre as brigas que marcaram as filmagens de Ad Astra. O produtor conta que James Gray é um cineasta de personalidade forte, e que já tinha um filme ideal pronto antes de outros colaboradores entrarem no projeto. Portanto, era sempre difícil convencer o diretor e roteirista sobre mudanças necessárias no longa-metragem. Da mesma forma, ele conta que Brad Pitt — que enfrentava problemas pessoais sério, como a separação de Angelina Jolie, quando entrou no projeto — é um profissional muito interessado e, na posição de produtor e protagonista, fez várias interferências e contribuições criativas. Ao que tudo indica, foram discussões construtivas que eleveram Ad Astra ao nível de excelência encontrado nos cinemas. Sendo, assim, um process mais saudável que a história muito conturbada que envolve a realização de Apocalypse Now. Conhecido por ser intratável e inflexível, Francis Ford Coppola começou com o pé esquerdo ao lutar com a própria convicção e escalar Harvey Keitel no papel do Capitão Willard em vez de Martin Sheen, com quem se impressionara anos antes ao fazer teste para o papel de Michael Corleone em Poderoso Chefão. A troca só foi feita após o início das filmagens, com o cineasta tendo de voltar para Los Angeles para efetivar a substituição. Depois, o diretor encontrou severas dificuldades para alugar equipamento para o filme, seja por causa de seu roteiro (que teria “horrorizado” o Departamento de Defesa dos Estados Unidos), seja por questões logísticas envolvendo a produção nas Filipinas. Um exemplo disso eram os subornos constantes cobrados por militares locais. O orçamento do filme, aliás, explodiu por fatores diversos: por necessidade de mais efeitos visuais, por causa de um roubo da folha de pagamento, devido a um tufão que destruiu os cenários, porque Marlon Brando voltou para o set gordo demais e as cenas tiveram de ser reescritas etc etc etc. O resultado foram 236 horas de material bruto e um processo de pós-produção tão caótico quanto os 15 meses anteriores (entre idas e vindas) no campo filipino. Portanto, Apocalypse Now enfrentou muitas incertezas, alguns adiamentos e teve de levantar muita grana extra (o orçamento inicial de US$ 12 a 14 milhões subiu para US$ 30 milhões!) para enfim ser lançado comercialmente, em agosto de 1979. A megalomania de Francis Ford Coppola o levou à beira da loucura e da falência. Mas foi recompensada com Palma de Ouro em Cannes, Prêmio da Academia, Globo de Ouro, BAFTA e tantos outros. Além de entrar para a história como uma obra-prima do gênero.

Bônus: a diferença de tempo e ritmo

Ad Astra - Rumo às Estrelas Apocalypse Now são duas obras absolutamente autorais apesar de todas essas semelhanças. James Gray se baseia no pesadelo na selva de Francis Ford Coppola para realizar um filme que se mantém fiel à fundação de seu cinema (valeu, Flag!): a família. E essa diferença também é muito perceptível em termos formais. Coppola impõe sobre o espectador o peso do tempo no Vietnã para exprimir o horror vivido pelos personagens naquele terreno selvagem. Em outras palavras, o ritmo de Apocalypse Now se arrasta no limite do insuportável, e cada um desses minutos é narrativamente precioso para a construção dramática da missão inglória do Capitão Willard e, de quebra, dar senti à loucura que acomete o Coronel Kurtz. Ad Astra alcança, ao meu ver, uma verdadeira façanha ao contar uma história tão parecida, com tanta profundidade e introspecção, com uma estrutura narrativa tão mais fluida. Nesse sentido, Ad Astra se filia bastante a Os Donos da Noite (2007). São dois filmes em que muita coisa acontece, mas em que essas cenas de ação são fio condutor dos momentos em que nada acontece. O eixo dos filmes de James Gray é de ordem psicológica. E essas questões permeiam todo o longa-metragem, com um peso agoniante, sem comprometer seu ritmo. O espectador nem vê passarem os seus 123 minutos — duração bem inferior aos 202 minutos oficiais de Apocalypse Now Redux, que é o melhor corte do filme, a versão do diretor Francis Ford Coppola.

Comentários (1)

Ted Rafael Araujo Nogueira | quinta-feira, 03 de Outubro de 2019 - 01:41

A diferença é que um é mais ou menos e o outro é uma obra prima.

O personagem do Piit tem uma motivação diferente pra encontrar o pai. Não quer matá-lo de saída e sim encontrá-lo, lá o que vai rolar não se sabe, pode rolar até um abraço maroto. E Willard aprende a respeitar Kurtz na trajetória de um Vietnã maluco. Ou seja, há um enriquecimento dobrado de personagem e trama através da mudança de postura de Willard na missão - algo que acaba por não impedir seu desfecho - e sua crescente loucura por outra ponta. Em Ad Astra estas lombras são menos acentuadas e conflitantes. Porém como é uma narrativa de escolhas que primam ainda mais pela solidão física por se estar no espaço, faz um certo sentido, isso somado pelo que se conhece de Gray. Sem falar no choramingo de Ad Astra que enche o saco, mas que, surpreendentemente, se resolve sem frescuras, o que é bom.

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