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A ascensão do folk horror

A ficção já sugeriu o assombro por trás de tudo — o Plymouth Fury em Christine — O Carro Assassino, a sedutora televisão em Videodrome — A Síndrome do Vídeo, o gerente de motel em Psicose ou o sofisticado psicólogo em O Silêncio dos Inocentes. Nada é o que parece, e talvez esse seja o principal chamariz do que se convenciona a chamar de folk horror.

Midsommar — O Mal Não Espera a Noite, segundo filme de Ari Aster após Hereditário, é um dos destaques do ano de 2019, contando a história de colegas de faculdade que participam das festividades do solstício de verão na Suécia. Não demora, é claro, para que aquelas pessoas gentis passem a demonstrar perigo.

Para muitos, é só mais uma convenção, é claro — com filmes de tubarão, zumbis, possessões, assassinos seriais, precisamos de nomes para cada um? Bem, há quem diga que categorizar ajuda a compreender uma produção por meio de recortes. Se formos pensar assim, de onde veio tal (sub)gênero?


Um breve retrospecto

Autor de Folk Horror: Hours Dreadful and Things Strange, Adam Scovell disse, em entrevista a Rupert White, que o diretor Piers Haggard foi o primeiro a usar o termo para definir seu filme, O Estigma de Satanás (1971).

À época, poucos filmes foram encaixados na categoria, como O Caçador de Bruxas (1968), com Vincent Price, e O Homem de Palha (1973), com Christopher Lee. Os ícones do horror gótico graças a adaptações de sucesso de Bram Stoker e Edgar Allan Poe atraíram um interesse inicial no horror perpetrado em terras remotas.

Não foram os primeiros a abordar esse tipo de assunto, é claro. Jacques Tourneur, francês que fez carreira nos Estados Unidos, é um exemplo inicial desse tipo de interesse, graças a filmes de horror como A Morta-Viva (1943) e A Noite do Demônio (1957), todos envolvendo a perdição do protagonista ao visitar terras longe dos grandes centro urbanos.

Scovell aponta que esses três filmes realizados nesses cinco anos, entre 1968 e 1973, são fundamentais para o surgimento dessa tendência, captando o zeitgeist da época — o lado assustador da contracultura com a Família Manson e suas estranhas crenças, por exemplo.

No resto do século XX, entre outros exemplos marcantes envolvendo lendas em lugares remotos, podemos destacar alguns sucessos como Colheita Maldita (1984) e A Bruxa de Blair (1999). O Mistério de Candyman (1992) pode ser considerado um exemplo mais urbano dessa abordagem, ainda que envolva certo nível de deslocamento físico.

No mesmo ano de Morte Negra, macabro filme de mistério sobre o lado hardcore da Idade Média, foi lançado pela BBC o documentário da A History of Horror (2010), aparentemente houvendo uma revitalização nesse interesse: desde então tivemos uma torrente de lançamentos do gênero com Kill List (2011), A Bruxa (2015) e Apóstolo (2018), além do próprio filme que abre o artigo.

Mas o que torna folk horror, folk horror?


A ambientação acima de tudo

Filmes com estrelas já famosas ou emergentes de Hollywood à época tiraram os cinemas dos estúdios, como Bonnie & Clyde — Uma Rajada de Balas (1967), Sem DestinoPerdidos na Noite (1969) e M*A*S*H (1970). Para Rupert White, no cinema de gênero não foi diferente: muitos dos filmes supracitados ajudaram a tirar o cinema de horror dos estúdios góticos da Hammer e jogarem seus atores em grandes locações — Scovell considera esses filmes quase uma resposta à “pompa” das produções anteriores.

Como Midsommar — O Mal Não Espera a Noite, a premissa básica não difere muito em tese de, digamos, Drácula ou A Queda da Casa de Usher, exceto por uma diferença básica: o aspecto popular. Se os clássicos literários envolvem grandes castelos e nobres decadentes, essa corrente de filmes lida com o contraste entre o indivíduo de fora e seu entorno profundamente diferente.

Folk é abreviação de folklore, ou folclore quando traduzido, que podemos entender como “conhecimento das pessoas”. Há várias acepções para o uso — os músicos Bob Dylan e Joan Baez são chamados de “folk contemporâneo”, por exemplo — mas o site Folk Horror define como um subgênero que faz referência às religiões pagãs europeias.

Folk religion” é, inclusive, o termo que usam em inglês para as religiões de massa, para as crenças e superstições não relacionadas às religiões oficiais. Em Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular (2007), Carlos Rodrigues Brandão argumenta que “a religiosidade popular recria símbolos, rituais, práticas e crenças da religião erudita, mas com re-significações próprias”.

Re-significação é como podemos entender o que é o subgênero, afinal: o protagonista embarca numa missão que o leva a um lugar distante, normalmente o interior de um país; os modos e crenças das pessoas são inicialmente exóticos, diferentes da “cidade grande”. Porém, logo os dogmas irão se demonstrar mais reais , ou levados a mais a ferro e fogo do que poderia ser calculado. A beleza dos ermos se transforma em desafio em um ambiente inóspito. E, por fim, o desafio do protagonista é imergir naquela nova realidade descoberta — ou ser consumido por ela.


O terror do desconhecido

A primeira temporada de True Detective (2014) apresentou a muitos espectadores o “horror cósmico” ao fazer referência à fictícia cidade mitológica de Carcosa e à entidade conhecida como O Rei de Amarelo, ambos elementos de uma peça que enlouquece quem lê. Os episódios mostram ao longo de vários anos a vida de dois detetives sendo profundamente abalada por tais elementos.

Nic Pizzolato promoveu no primeiro ano da série, antes de qualquer horror, uma imersão em um lado ignorado dos Estados Unidos, às voltas com rituais e sacrifícios. Uma investigação policial aos moldes da literatura hard-boiled revelou-se um fio condutor e tanto, e hoje é considerada uma das melhores antologias da história recente da televisão.

Em Pensando a intolerância do ponto de vista psicanalítico, Claudio Eizirik afirma que a xenofobia, aversão pelo diferente, é uma regressão a um estado animista, a crença dos homens primitivos de atribuir espírito a tudo. Para Jung, anima, ou alma, também são arquétipos contraditórios, e talvez seja uma razão de terror.

Se pensarmos nisso, os protagonistas desse tipo de obra tem um mito formado em volta de si: as instituições governamentais, as religiões organizadas, a cultura globalizada. O contrário disso assusta, mas também fascina, e cada personagem demonstra diferentes níveis de limites ao flertar com perspectivas desconhecidas. Em Introdução à filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer (2001), Roger Yabiku argumenta que o ser humano é um “animal simbólico”, que “edifica um mundo próprio a partir da criação de símbolos, a principal atividade humana, não podendo viver sem expressá-los”. Ou seja, o medo humano também é simbólico, e o terror artístico é sua materialização lógica e estética.

Já localizamos a obra de Ari Aster em uma tradição. Também argumentou-se sobre tais binômios do medo. E de onde vem o medo em Midsommar?


Fábula desestabilizante

Se pensarmos sobre a psicologia dos cultos, a história de como Dani perde pais e irmã de maneira escabrosa e vai parar em Hälsingland, interior da Suécia, em um verão de dia eterno. Está psicologicamente vulnerável e solitária no mundo.

Enfrentando os estágios do luto, é a única desconectada dali; só está por causa do namorado, que anunciou a viagem de última de hora. Sua dependência emocional é o único vínculo com o local.

A narrativa é até simples, cheia de conveniências, mas as cores, as formas, a solenidade geral, o ritmo das danças e músicas representam comunidade integrada para indivíduos conflituosos entre si e consigo mesmos. Os estudantes de antropologia tratam de maneira fetichista e invasiva, mas Dani, por outro lado, torna-se um deles, abraçada pela imersão naquela atmosfera.

De forma corajosa, Aster reduziu os eventos ao mínimo, evitou o ocasional absurdismo de Hereditário, e elevou uma premissa quase inexistente com um trabalho pesado de longos planos, silêncios abundantes e montagem evocativa. Radicalmente distante do modelo industrial — ou a cara do cinema da A24.

No final das contas, o filme é um atestado de como os gêneros enquanto filosofias de composição sempre encontram re-significação em diferentes contextos, em jornadas emocionais moldadas de maneira singular que visam abordar indivíduos alterados pelas circunstâncias e como se integram — ou desintegram — em diferentes contextos.

Se no início relegado a uma espécie de “cinema B”, o horror rural, oculto, folclórico ou popular, como quer que chamem, se consolida como nunca entre crítica e público. E em uma época socialmente confusa e fragmentada, não é difícil deduzir a razão.

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Comentários (3)

André Araujo | quinta-feira, 16 de Julho de 2020 - 21:51

Terror ensolarado. Gosto desse conceito. Vale a pena ver a versão do diretor de quase três horas de Midsommar?

Ted Rafael Araujo Nogueira | terça-feira, 28 de Julho de 2020 - 10:45

Eu sou bem ignorante em folk horror. Vou me atualizar. Mudar o esquema clássico do gênero através da luz, por si só, já merece uma visualizada. Entre outros pontos importantes que o artigo aborda e que os filmes açambarcam.

Victor Narciso | segunda-feira, 03 de Agosto de 2020 - 01:21

Eu detesto esse filme, mas esse texto é ótimo. Consegue fazer um meio termo excelente entre a crítica cinematográfica e os textos acadêmicos, que muitas vezes são lidos nas universidades, mas ficam distantes de um alcance mais geral do público comum. Parabéns, Brum!

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