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Análise: Chernobyl


De todos os luxos concebíveis, a morte, em sua forma fatal e inexorável, é seriamente o mais dispendioso.”
Georges Bataille, em A Parte Maldita

Que não se deixe jamais esquecido, des-informado: ao lado da memória, e aliás tão delicada quanto ela, a questão massiva que Chernobyl (idem, 2019) coloca a girar, como numa bomba relógio, surpreendentemente em cada absoluto segundo de sua duração, é uma de ordem administrativa, econômica. Pior: fá-la, a nós que vivemos aqui, tão perceptivelmente constitutiva quanto o é o ar que respiramos. Neste exato momento. Por exemplo: quando se está atrasado para certo compromisso, a problemática de tal excedente – já se passou do momento inscrito, digamos – é medida, seja em tempo, seja em distância, por uma noção de economia: para cobrir aquilo a que se está faltando temporariamente, é preciso calcular a maneira mais rápida de redução, num veloz cálculo cuja variação de risco, de falha, costuma agitar-se como primeiro fator. Numa situação que já existe, diminuir os danos. A vida humana, pois, e como o melancólico arco do cientista nuclear Legasov bem demonstra, é uma questão de perpétuo gerenciamento econômico que facilmente surpassa o poder simbólico do dinheiro, das bolsas de valor, dos salários ou dos preços das coisas. Porque também é deveras simbólico que a série principie por um suicídio – e que, às nossas maneiras particulares, por um manejo de cortes que conhecemos como “planos”, já saibamos dele antes mesmo que ele aconteça.

Depois de gravar cinco fitas e falsear uma ida à lata de lixo para escondê-las num canto superior da parede externa de sua casa, sabendo-se observado, Legasov (Jared Harris) é visto de costas, antes de retornar à casa, num recorte que lhe toma do tronco acima. Uma parada que é mais que abstratamente a suspensão daquela mesma vida. Algo sobre a quietude, sobre a dilatação sutil daquela espera, anuncia certa despedida. Algo no peso do corpo reconhece seus últimos momentos de peso. Estivemos testemunhando os últimos minutos de um homem que bem podia estimar, ele mesmo, após Chernobyl, os segundos de sua própria morte. Multiplicar, literalmente em segundos, o máximo de cinco anos que sabia ter de vida antes que as doenças deteriorassem seu corpo. Cientistas, defende-se, lidam com verdades, enunciados factuais. Mas, no meio disso mais ou menos programável como resultante da radiação em suas células, isto chamado vida, no meio disso há uma decisão. “Fatores de natureza científica, fatores de natureza muito humana”, diz a física fictícia Ulana (Emily Watson) em tribunal, curiosamente também enquadrada de tronco acima enquanto os olha, enquanto nos olha. Do atrito de fatos, nascem histórias, e elas nos olham com a mesma frontalidade de um tribunal. Os mortos, sim, falam.

Olhar a vida de frente, colocar-se em posição de percebê-la por detrás, como se fosse um outro. Difícil esquecer, inclusive, o olhar que se dá à cortina de fumaça marchando por sobre a região ucraniana: uma subjetiva nem da fumaça, nem das nuvens, muito menos do solo: é o acontecimento nuclear a que se está assistindo. Vasto como um monstro, e todos os monstros são nossos, feitos de homens, por homens. Mas, tanto quanto a natureza não conhece um alter-centrismo (a noção mais propícia, ainda indigesta, que temos até hoje se chama “sociedade”), o empurrão na impossibilidade que Chernobyl angariou para si é de uma literalidade medonha: “empurrado”, o botão AZ-5 do cilindro quatro, que pararia o núcleo sobrelotado de urânio e evitaria a catástrofe, na verdade apenas a catapulta de uma vez, por uma lacuna informacional, e entre o Estado, uma meia dúzia de sujeitos, a omissão de uma informação sabida e algumas hastes ponteadas de grafite, subjaz, cheio de centros, um acontecimento que “o horror” não pode sequer nomear; inimaginável, irrepresentável. Des-informações, ao que parece, se propagam em círculos, invisíveis como o ar.

Irrepresentável.. e no, entanto, a imagem e a palavra persistem. Por que persistem? Porque outras dezenas de usinas nucleares ainda se contam na superfície da Terra inteira? Porque crianças e mães ainda exibem mutações de nascença, até hoje? Porque a questão da suficiência energética local ainda nos assombra? Decerto que sim para todas. Mas também por um outro problema de raiz econômica que devemos escavar – ao custo das palavras e dos signos. Um perguntado pela boca de Legasov apenas duas vezes, mas que ressoa como um fantasma que se recusa a morrer, em sítio, em solo, no ar: qual o custo das mentiras? Posto, que subsequente ao vazio que deseja respondê-la sem poder, vagueiam as diferenças letais entre fatos e ficções, dançando como a radiação travestida de neve e a crescente rajada de luminosidade nuclear. Espetáculo dispendioso de morte visto na calmaria das árvores e sobre a água corrente. Um quesito de informação transforma a morte em algo belo. “É lindo”, disseram os habitantes das proximidades da usina no meio da madrugada, despertos, verticais e sorridentes na ponte que lhes melhor acalentou o desejo de ver, participar.

E naquela decadência cronometrada, capturado como uma pequena festa se desenrolando em lentidão para que a melhor percebamos: o inferno, inferno da terra, propriamente dito, não de aquém, não de além, é de uma invisibilidade que perturba as formas. Deformidades vistas em superfícies mas para as quais o processo se iniciou imaterialmente. Poucas vezes no audiovisual um pânico esteve presente tão ausente. Mulheres grávidas inconscientes das alterações genéticas de seus bebês, bombeiros perturbados por algo de estranho na atmosfera, um campo de mortalidade instantânea magnetizado na circunvizinhança de uma fumaça preta – por onde quer que se olhe, o acidente de Chernobyl está. Sujeito-contaminação dotando todo espaço de uma ausência prevista. Sem uma romântica da adjetivação, é possível dizer que há ali um paulatino sufocamento, uma compressão que cada corte aproxima como se nos lançasse defronte a algo incompreensível e sob o fardo da resolução.

Pensemos, nós que somos alavancados à condição de testemunhas visuais também fictícias daquilo que a cada duas horas é o equivalente em dobro da radiação de uma Hiroshima: cruzando os olhos de todos os habitantes, bombeiros e cientistas ao longo do primeiro episódio há uma epidemia vibrátil de desconfiança funcionando por círculos. Quanto mais próximos do núcleo implodido, mais rápidos os olhos descreem, ao mesmo tempo em que agem, sobre aquilo que visivelmente tomou uma forma não usual. Um conteúdo cinza (que não devia estar ali presente) sombreia as rochas e o metal dos entulhos; múltiplos de homens se ajoelham para gorfar; há uma fuligem curiosa, escura, infestando o ar, pintando os pulmões e maculando a pele, um ar que não é mais tão-somente ar; dentro do solo, adentrando as narinas dos cachorros, partículas pequenas demais ao alcance do olho penetram; pela matéria invisível das reações químicas, robôs pifam. Nada, absolutamente nada, orgânico ou inorgânico, restará ileso – e já sabemos disso, também – daquilo que só por enquanto não se vê. Mas, saturada, pressionada pelo homem, a química não se demora.

Aquilo a que assistimos vai morrer, está morrendo: se se aperceber sagazmente, o espectador de Chernobyl logo estará tão encerrado no olho do “acidente” quanto aqueles corpos são, em simultâneo, sua consciência mais ou menos anunciada e os próprios cadáveres. É raro que a história faça da geografia periférica um fator de bênção, ainda que ligeira. Somente aos explosivos acontecimentos a centralidade é o ápice de um excesso; e a informação, que quase sempre viajou com rapidez, desliza pelos cemitérios virtuais através da trilha que, com apenas duas notas musicais crescentes, faz da cidade, da usina, da população, uma sinfonia angustiante de contenção e assepsia. Retardar uma segunda explosão por efeito do vapor, para depois contê-la, e para tal, economicamente falando, enviar centenas de soldados ao sacrifício. Higienizar um corpo acidificando a si mesmo para desacelerar algo, quando o menos cruel na verdade seria poupá-los dos urros com uma bala na cabeça. Nada producente, nada lógico, pouquíssimo viável, isto que sobrevém ao custo das mentiras. Dito de uma maneira também nada razoável: alto preço em toneladas de materiais e máquinas, em mortos, que o Estado soviético pagou pela ocultação de um fato. Algo desenhado para gerar vida, energia, derrapa numa chacina. Fosse a história, a colocação “da culpa”, assim tão simples...  

Tudo aquilo que sucede o primeiro letreiro é, de certa forma, tocado pelo registro de algo que não é simplesmente um acidente, simplesmente uma cidade, simplesmente angústias e heroísmos; algo que não se registra, mas cujo nome recebido é a própria escapada de si em milhões de estilhaços; algo “acontecimental”. O que é um acontecimento? Tomemos o exemplo das doenças suscitadas pelo contato inevitável com a radiação: os vômitos, a pele mais que branca, mutação jamais antevista, exposta ao nervo e à carne crus, a rachadura da voz que mal se escutará em breve, as convulsões consumindo as partes internas em lacerações de acidez. O que é aquilo? Onde está a doença, por que sintoma começou? Pode-se dizer medir esse começo ou essa duração? Está ali na pele, se encerra na morte ou só nela, então, ganha sua inteireza, seu válido nome de doença? Do segundo que propaga o som de alarme na cabine de controle, pontapé da obra, ao último vocábulo proferido na corte de justiça um ano depois, o que se tentou reconstituir em cinco episódios foi menos a preocupação fidedigna de saber “a realidade” Chernobyl do que o espraiamento de uma missão contra todas as suas proliferantes problemáticas. Lembremos: diante de algo já existente, dessa fabricação quimérica chamada mentira, fazer o máximo possível com o tempo que resta.

“Comprar” tempo, “pesar” variáveis, “manusear” plantas e desenhos de estruturas para estimar uma redução. A fisicista incumbida de recolher a memória dos cientistas participantes daquela sala de controle, porque poupar, salvar, dar conta de certas palavras é o gesto ínfimo de um desejo de não-repetição. O professor que, salvando a si mesmo e a um helicóptero com soldados e O político, evita (retarda) um grau maior de catástrofe, quiçá uma segunda de gravidade também incalculável – e o faz medindo as palavras para um efeito cristalino e preciso: “se você voar por cima daquela nuvem, garanto que morrerá em menos de três horas”. Não “todos nós” que estamos em voo, mas “você, piloto”: por vezes é crucial falar a um sujeito como o singular que ele é; em outras mesas, noutras circunstâncias, dizer-lhe com exatidão das massas da qual ele faz parte. Cálculo de uma finura cuja medida só o ato sendo atuado pode dizer. O político, por sua vez, que impede que seja lançado ao esquecimento todo o trabalho de escavação da verdade, como sabe que já havia sido feito dez anos antes, antes que a história se repetisse e ultrapassasse a própria estupidez, “somente” ao levantar, cônscio do valor de autoridade de sua posição, para pedir mais tempo, diante do júri, à fala de Legasov. A alguns homens, a preço de potência, o tempo vale mais; vale o imponderável valor de uma extinção. Para eles, aliás, neles, está contida a responsabilidade de uma cifra, de uma abstração numérico-política chamada Estado, chamada Povo. Quantos habitantes contabilizava Chernobyl? Mais interessante perguntar: quão duradoura é a toxicidade da transgressão da natureza?

Para Lyudmilla (Jessica Buckley), a mulher que cruzou consideráveis divisas para tocar o marido, ali quando era terminantemente proibido, sempre tocá-lo uma vez mais, a duração adveio na forma de um milagre: o bebê de que estava grávida, natimorto, absorvera toda a radiação em seu corpo. Último lacrimejo ressequido de esperança após a desaparição do marido sob uma massa uniforme de concreto, porque morrer não foi suficiente (foi preciso selá-lo do resto do mundo). Ela permanece viva, fatos nos dizem, mas sua inesperada sobrevida repuxa do cordão umbilical uma força simbólica maior que aquela entre mãe e filho.

Notemos, pois, as raízes das coisas: a palavra economia, derivada do grego oikos + nomein, funciona como uma síntese entre “casa” e o verbo “manejar”, “gerenciar”. Mas o conceito de casa, para este mesmo povo, não se restringia à laços consanguíneos – uma vez que, se “acrescentassem” ao ambiente, todos podiam ser considerados participantes de uma casa – nem tampouco visava algo além da manutenção de uma descendência perante o público. Ser, como Maurice Blanchot resgatou das terminações gregas para conceituar as Comunidades, era ser para alguém. Mulheres são responsáveis pela vida de uma casa? Ora, não sejamos reducionistas ou tolos; estivemos o tempo inteiro falando de uma segunda. Aquela, aliás, que se só aparentemente tem início quando colocamos os pés fora de nossas portas. Prolongados no mundo, não dele segregados como as propriedades nos estimulam a confabular, no entanto, nossos núcleos recebem interferências de histórias. Algumas das quais, quando não ouvidas, quando riscadas em vermelho, quando arrancadas entre a página quatro e a página sete, quando não transmitidas na integridade suada de sua factualidade, carregam um potencial genético capaz de fazer eclodir o avesso dos milagres. Na qualidade de habitantes de uma mesma casa, ainda pouco sabemos sobre o custo de uma comunicação. Talvez nunca saibamos. Mas não é interessante notar o quanto a história ainda se debate(rá) sobre nossa impossibilidade escancarada no transmissível?

Em nome do porvir, três heroicos mergulhadores dão às próprias vidas uma validade grosseiramente encurtada. Sem eles, sem seus gestos lançados às escuras, nos túneis, sob a densidade ensurdecedora dos medidores de radiação a ponto de estouro, não teria havido isso que ainda não existe – o futuro. Vivemos, então, projetados? É em nome de um imaginado tempo “à frente” que se apostam nossos recursos todos? Episódio após episódio, corpos perdendo formas, transmutados em coisas, des-identificados por gritos que podiam ser de qualquer um; a terra que precisa ser enterrada sobre si mesma para abrir espaço a algo de minimamente fértil; animais no dever de serem mortos da maneira mais econômica possível para evitar contágio. Toda ação encolhida no prazo de sua oferenda. O esforço de milhares de homens, de toneladas, de décadas, por centenas de quilômetros... para chegar ao zero. Misterioso número que é ausência de número e a partir do qual chiam os dosímetros, oscila o contador acusatório da letalidade do núcleo atômico, medem-se quantos habitantes não poderão sair de Chernobyl para espalhar caos e “más informações”. Talvez, também, onde estaríamos, não fosse a coragem de alguns homens e mulheres em romper o silêncio. O custo das mentiras não tem nome, mas certamente paira, espectral, em tudo aquilo que nunca pôde vir a ser – porque a alguns, teria sido custoso demais recusar o luxo do falso heroísmo. Pelo preço de... permanecemos des-informados sobre a quantidade de vidas extintas em Chernobyl. Alguns cálculos não podem mais ser feitos. Que tenhamos histórias, bem como a bravura para contá-las.

Comentários (2)

João Davi Minuzzi | domingo, 14 de Julho de 2019 - 09:47

Tem análise da série mas nem tem a série no site... sad

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