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Um apelo nostálgico, saudoso e pessoal à animação - parte III

Parte III - O Ouro

Quando decidiu produzir Cinderela, a Disney tinha uma dívida de U$ 4 milhões, não lançava nenhum grande sucesso desde Branca de Neve e os Sete Anões e havia passado seis anos segurando as pontas financeiramente através da produção de live-actions e curtas-metragens copilados para o cinema. Um novo filme de princesa era o mais próximo que o estúdio tinha de uma aposta segura. Caso desse errado, seria o provável fim das animações Disney.

Mas Cinderela foi um sucesso e garantiu ao estúdio bons anos de produção de qualidade. O período de Cinderela (1950) a Mogli - O Menino Lobo (1967) é conhecido como a Era de Ouro da animação. É sabido que a morte de Disney coloca Mogli como o marco final, no entanto, pela produção fraca que seguiria a Era de Ouro, pode-se culpar a televisão tanto quanto o luto, como veremos adiante.

Em relação aos filmes pioneiros, a principal inovação de Cinderela está na construção dos personagens. A começar pela protagonista, que ganha uma complexidade inexistente na pureza de Branca de Neve e Dumbo ou na tabula rasa que é Pinóquio e Bambi. A personagem se permite uma fina acidez e ironia no relacionamento com as irmãs postiças e desprezo por Lúcifer, o gato — quem pode imaginar a pouco expressiva Branca de Neve falando “Sua majestade” e “Aula de música” no mesmo tom de sarcasmo?

O papel da música nos filmes da Era de Ouro é um pouco mais como nos pioneiros, em que ela serve para pontuar a obra com cantarolices tão intrínsecas ao ritmo do filme que podem passar despercebidas como números musicais, que como no hiato, em que a música conta a história. Em Cinderela, a música é reconhecida pela narrativa. O Meu Amor (So This is Love), a balada da dança no baile, é murmurada em outras cenas pelas personagens e é crucial para o desenvolvimento do clímax. A grande experimentação do filme também está em uma de suas músicas: Cantai, Rouxinol (Oh Sing, Sweet Nightingale). As bolhas de sabão sobem, cada uma com um reflexo da borralheira, cada uma repetindo o seu canto em coro de uma só pessoa. Essa técnica ainda estava em fase de testes pela indústria fonográfica e só viria a se popularizar quase uma década depois, no rock.

Se Cinderela é bom, o seu absoluto sucesso de bilheteria é melhor, pois seria seguido por mais um fracasso financeiro histórico do estúdio. Se você foi uma criança brasileira nos anos 1990, é provável que se lembre de Alice no País das Maravilhas (1951) sendo exibido aos sábados, com bastante frequência — menos do que eu então gostaria, é bem verdade — pelo SBT. Na época, era o único longa-metragem de animação da Disney que poderia ser exibido dessa maneira na TV aberta. Alice não vendeu bem em nenhuma outra mídia — cinema ou VHS. No seu livro Os Segredos dos Roteiros da Disney, Jason Surrell afirma a insatisfação do próprio Disney com o filme. De acordo com o autor, o estúdio cedeu às pressões dos fãs da obra de Lewis Carroll e fez uma adaptação demasiadamente fiel, depois lamentada.

Como são as coisas no gosto pelo cinema e nas ironias da história, confesso a minha gratidão a esse fracasso. Alice para mim é a lembrança de uma hora e meia de imersão em um mundo completamente diferente de qualquer coisa que eu teria imaginado quando criança. A porta de entrada para o universo dela era uma televisão pequena e velha, assistida do chão por alguém que não poderia estar mais intrigado pelo que veria — e que sofreria horrores se perdesse um único quadro dos créditos iniciais.

Alice foi também a primeira de uma série de adaptações da literatura inglesa moderna para a animação Disney. O seguinte, Peter Pan (1953), tem clara a sua intenção de colocar o imaginário de J. M. Barrie num meio em que seria possível explorá-lo com fidelidade. Os personagens mantém a nova tradição proposta por Cinderela: eles são ativos na trama e não tão doces. Perceba, por exemplo, que Sininho, a sidekick de Peter, chega a planejar o assassinato de Wendy por ciúmes mais de uma vez. A literatura e mitologia britânica estariam presentes no período também por A Espada Era a Lei (1963), que toma algumas liberdades com a história do Rei Arthur e seu mentor Merlim.

Do período, acredito que o mais lamentavelmente subestimado — tanto como filme quanto como indício de um momento histórico — seja A Dama e o Vagabundo (1955). Inspirado na infância de Disney em Marceline, subúrbio de Missouri, o filme é o reflexo nostálgico de um tempo em mudança. É incrível como o estúdio trabalhava a opressão, a dor da indiferença e a segregação social muito melhor a partir de personagens animais em interação com humanos — é assim também Dumbo. A chegada de um bebê na família dos seus donos e de um vira-lata na vizinhança transformam o mundo colorido que Lady julgava conhecer. Curiosamente, aquele que ela descobre durante o filme, embora sujo e sombrio, não é pior, apenas talvez mais honesto.

É importante associar um conto nostálgico como A Dama e o Vagabundo ao momento histórico que os EUA atravessava. Em resumo, a Disney produziu um romance interracial quando o movimento de negros por direitos civis e, em contraponto, a reafirmação do racismo estavam ganhando força. Mudanças no cotidiano da classe média americana, como o surgimento da televisão, também têm certo valor para o filme. No caso, ele quase explica a despedida que é concretizada em A Bela Adormecida.

A ideia de um filme de princesa desperta na Disney uma ambiciosa perspectiva de inovação. No caso de A Bela Adormecida, tudo o que foi trazido pelo filme — os padrões cuidadosamente trabalhados, a narrativa focada, sem ceder muito espaço para o humor de tramas secundárias — só seria novamente adotado no Renascimento (de A Pequena Sereia a Tarzan), pois o estúdio começava a enfrentar o seu maior inimigo estético: a televisão.

A animação televisiva que surgia nos anos 1960 era pensada de maneira econômica: investiria-se o mínimo na construção da imagem, e o máximo, para compensar, na construção da trama. Como se tornou hegemônica e consolidada no novo lar americano, o cinema de animação não teve muita opção a não ser se curvar a isso. Alguns filmes, como 101 Dálmatas e Mogli - O Menino Lobo, foram muito inteligentes na acepção dessa nova linguagem da animação. Ainda que lembrem, no traço e na narrativa elétrica, o que era feito pela televisão, são na verdade muito mais perspicazes na utilização da imagem. A Espada Era Lei não sofre da mesma sorte, assemelhando-se mais à triste produção que seguiria a morte de Disney e iria até o fim dos anos 1980.

Comentários (49)

Lucas Nunes | quinta-feira, 11 de Setembro de 2014 - 21:50

O Rei Leão, sem sombras de dúvidas, é a única obra-prima da Disney! Essa animação é fantástica! O Corcunda de Notre Dame, Aladdin e Pinóquio são ótimos também.

Lucas Nunes | quinta-feira, 11 de Setembro de 2014 - 21:50

"será que essa não é uma mensagem que incentive o diálogo entre pais e filhos - porque do contrário, haverá merda?"

Não. Não há nenhuma mensagem dessa no filme.

Lucas Nunes | quinta-feira, 11 de Setembro de 2014 - 21:52

É por isso que fico fulo quando dizem que Miyasaki é o Disney do Oriente. Ele é Miyasaki, não Disney.[2]

Concordo! Chamar o Miyazaki de Disney é o cumulo do absurdo, com certeza ele se sentiria ofendido.

Luís F. Beloto Cabral | sexta-feira, 12 de Setembro de 2014 - 10:53

"Não. Não há nenhuma mensagem dessa no filme."
Pois é... Para mim há.
"Chamar o Miyazaki de Disney é o cumulo do absurdo, com certeza ele se sentiria ofendido."
Ofendido certamente por não reconhecerem o talento ímpar dele, apesar de justamente por causa dessa genialidade ele, no final, certamente não se importar com essas comparações tolas e sem sentido.

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