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Câmera tremida na mão: A Bruxa de Blair e por que devemos tanto ao found footage

O ano era 1785. Em um pequeno vilarejo de Maryland, Elly Kedward é acusada de bruxaria e banida do local durante um período de inverno intenso, sendo dada como morta. Algum tempo depois, os filhos daqueles que baniram Kedward desaparecem, juntamente com outras crianças. Temendo uma maldição, os moradores do vilarejo prometem nunca mais mencionar o nome da bruxa. Na década de 1940, sete crianças desaparecem nas cercanias da agora cidade de Burkittsville. Rustin Parr, um velho eremita, vai a um mercado local da cidade afirmar que “está completamente perdido”. Após uma busca de quatro horas, a polícia chega a sua casa na floresta, onde se encontram os corpos das sete crianças, ritualisticamente mortas.

Em 1994, três estudantes da Universidade Montgomery – Heather Donahue, Joshua Leonard e Michael Williams – chegam a Burkittsville para fazer um documentário sobre a lenda da bruxa de Blair, desaparecendo em seguida na floresta da cidade. Um ano depois, as filmagens dos jovens são encontradas e servem de base para um documentário chamado The Blair Witch Project: The Story of Black Hills Disappearances. Após passar pelo Festival de Sundance, o filme foi lançado nos cinemas dos Estados Unidos em julho de 1999, conquistando 249 milhões em bilheteria no mundo todo durante as dezessete semanas em que esteve em cartaz. O filme acabou ganhando o Prêmio da Juventude do Festival de Cannes.

Foi essa atmosfera factual e dramática de mito misturado com lenda urbana que arrastou milhões de espectadores ao cinema. Uma parcela considerável do público acreditou tratar-se de um documentário e esse é considerado atualmente o principal fator do sucesso do filme A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999), de Daniel Myric e Eduardo Sanchéz. A campanha de marketing tinha como base o uso da internet para sugerir que o filme era baseado em eventos reais, ou seja, que era de fato um documentário sobre os últimos dias de Heather e sua equipe. O site www.blairwitch.com alimentou a paranoia de uma internet que ainda engatinhava, recheando o imaginário popular com fotos dos jovens procurados e relatórios policiais, além das lendas em torno da bruxa. A campanha foi tão bem sucedida que o IMDb (Internet Movie Database) chegou a inserir na sua página sobre o filme que os atores estavam mortos.

A outra história do filme, por trás de toda mitologia e dos arquivos policiais, não é, no entanto, menos surpreendente, mesmo que não remonte ao século XVIII. Em 1994, o projeto nasce sob a forma de um roteiro de sessenta e oito páginas, com espaço para diálogos que deveriam ser improvisados. Dois mil atores responderam ao anúncio que pedia a tal capacidade de improvisação, pois eles teriam que sustentar suas próprias ações e falas durante as filmagens. As gravações começaram em outubro de 1997, em Maryland, e duraram cerca de oito dias. A equipe deixou os atores na locação com instruções básicas do roteiro, poucos suplementos (incluindo alimentação), um GPS e muitas baterias para o equipamento de filmagem. Durante o processo, os atores recebiam mensagens individuais dentro de caixas de leite com rápidas coordenadas para auxiliar em suas improvisações além de operarem as câmeras e criarem suas falas.

Com um investimento inicial de 35 mil dólares, os realizadores conseguiram vender o filme para o estúdio Artisan por US$ 1,1 milhão, complementados por mais US$ 25 milhões em gastos com a promoção da obra. Após refilmagens e outras alterações, o orçamento final da produção foi para US$ 750 mil. A Bruxa de Blair foi, sem dúvida, um marco para o cinema contemporâneo. Primeiramente por se tornar o filme mais rentável de todos os tempos, até então, na relação entre custo e arrecadação. Isso às custas de um filme com um orçamento de um carro, feito por estudantes de cinema da Flórida, que ampliaram os poucos recursos que tinham ao utilizarem a internet como aliada na expansão de uma pretensa lenda urbana. Além do sucesso de bilheteria, a película de Myrick e Sánchez foi aclamada pela crítica especializada e proclamada como um sinal dos novos tempos.

A Bruxa de Blair é o representante mais famoso do subgênero de horror found footage, que se iniciou no final dos anos 1990 e teve como auge o início dos anos 2000, fenecendo em popularidade ainda na primeira metade dos anos 2010. Sua trama é composta inteiramente ou em parte pela reprodução das filmagens encontradas, nas quais os protagonistas estão mortos ou desaparecidos, e parte da premissa de que todo o longa-metragem ou grande parte dele se trata de uma filmagem real encontrada por alguém e compartilhada com os demais. Por se tratar de filmes pretensamente reais — amadores ou semiprofissionais, como no caso das histórias nas quais os personagens pretendiam realizar um filme ou documentário —, os produtores recorrem quase sempre a imagens granuladas, tremidas e de má qualidade.

A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999/EUA) De Daniel Myrick e Eduardo Sánchez

O impacto do found footage acabou extrapolando o próprio gênero de horror, tanto em termos comerciais quanto de produção. Seu sucesso comercial fez com que filmes de orçamentos irrisórios se tornassem blockbusters instantâneos, tornando seus realizadores amadores pessoas com certo poder em Hollywood. A facilidade de se produzir os filmes (a estética amadora era um pré-requisito) e o uso que fez das novas tecnologias para narrar suas histórias causou um grande impacto na própria linguagem cinematográfica, modificando a forma de se reconhecer um filme quando se está diante dele.

Por esse motivo, a associação entre A Bruxa de Blair e o subgênero é tão típica: já se tornou comum encontrar filmes classificados como “ao estilo Bruxa de Blair”. Isso porque o filme é o exemplo máximo do subgênero, sendo, ainda, fundamental no seu processo de sedimentação, abrindo um novo mercado. A partir dele, o sentimento de que se podia lançar um filme com estética caseira e ganhar muito dinheiro e reconhecimento com isso se espalhou. A internet (em plena ascensão), a estética minimalista (não houve um único efeito especial no filme) e o aumento na oferta de aparelhos de filmagem baratos e portáteis ampliou esse processo. A partir de 2000, várias obras surgem utilizando a mesma temática do filme — ou seja, a exposição de filmagens encontradas pretensamente reais de pessoas mortas ou desaparecidas (por meio de um falso documentário ou não).

Embora muitos estudiosos afirmem que o subgênero tenha começado com o perturbador Holocausto Canibal (Cannibal Holocaust, 1980), de Roggero Deodato, muitos filmes de estética caseira e até familiar abriram caminho para o sucesso do found footage, como Estranhas Criaturas (Alien Abduction: Incident in Lake County, 1997/EUA), de Dean Alioto, que já era uma refilmagem do mesmo filme “caseiro” de 1989. Mas o auge e a consolidação do found footage só foram alcançados com o sucesso da franquia Atividade Paranormal, de Oren Peli, cujo primeiro filme (Atividade Paranormal [Paranormal Activity, 2007]) foi produzido com ridículos 11 mil dólares e lançado em 2009 pela Paramount. A disseminação foi tão forte que mesmo outros subgêneros do horror, como os filmes de zumbi, aderiram ao hype, nos brindando com obras bem-sucedidas e artisticamente ousadas, como o espanhol [REC] (2007), de Jaume Balagueró, e Paco Plaza e Diário dos Mortos (Diary of the Dead, 2007/EUA), do mestre George Romero.

Atividade Paranormal (Paranormal Activity, 2007/EUA). De Oren Peli.

Mas com a sedimentação veio a banalização, e os filmes não mais tentavam se vender como reais, o que tornou o subgênero famoso, abrindo mão dos textos que explicavam como os filmes haviam sido encontrados, mas abusando da estética caseira e de tudo o que ela podia proporcionar, como câmeras de vigilância, notebooks, videochamadas e até mesmo o uso do sensor do Kinect do Xbox. A câmera é posta em xeque e até mesmo questionada pelos personagens.

Seja por excesso ou por desleixo, os filmes found footage começaram a sumir na segunda metade dos anos 2010, não sem antes nos deixar alguns diamantes brutos e outros lapidados. Em tempos de quarentena e de isolamento social, seu modus operandi foi até reativado: o filme de baixíssimo orçamento Host (2020, Reino Unido), de Rob Savage, foi um hit instantâneo depois de lançado pela quase obscura por aqui plataforma Shudder. Na trama, um grupo de amigos evocam uma entidade maligna em uma sessão do Zoom durante o isolamento social, usando e abusando da estética do found footage. O sucesso rendeu ao diretor um contrato com a aclamada Blumhouse e a nós a certeza de que algumas pequenas revoluções estéticas nunca se apagam totalmente.

Lista de 5 found footages pouco conhecidos que são imperdíveis

Aconteceu perto da sua casa (C'est arrivé près de chez vous, 1992, Bélgica). De  Rémy Belvaux, André Bonzel and Benoît Poelvoord.

O belga Aconteceu Perto da sua Casa (C'est Arrivé Près de Chez Vous1992 / Bélgica), de Rémy Belvaux, Benoît Poelvoorde e André Bonzel. Poelvoorde encarna Ben, um serial killer seguido por uma equipe de documentaristas no mínimo antiéticos que filmam suas empreitadas. Além do formato ser interessante, o desenvolvimento da trama é impagável, dosando bem comédia e drama. Em 2003, o britânico O Último Filme de Terror (The Last Horror Movie), de Julian Richards, aproveitou o tema e se esbaldou em uma trama sofisticada.

As Fitas de Poughkeepsie (The Poughkeepsie Tapes, 2007/EUA). De John Erick Dowdle.

As Fitas de Poughkeepsie (The Poughkeepsie Tapes2007 / EUA), de John Erick Dowdle. Talvez um dos melhores found footages ever! Em uma casa em Poughkeepsie são achadas filmagens de um serial killer ao longo de 10 anos, iniciando uma caçada de gato e rato entre o assassino e a polícia, com contornos devastadores. Enfim, o filme é perturbador, inteligente e extremamente surpreendente.

Megan está desaparecida (Megan is Missing, 2011/EUA). De Michael Goi.

O Segredo do Lago Mungo (Lake Mungo2008 / Austrália), de Joel Anderson. Ainda na primeira leva dos filmes impulsionados pelo sucesso de A Bruxa de Blair, esse filme australiano vence por dar um tratamento minimalista e assustador ao found footage que se vende como um falso documentário. Após sua misteriosa morte no lago, Alice Palmer começa a dar as caras na cidade e na casa de sua família como uma entidade paranormal. Uma trama focada, que consegue prender o espectador.

V/H/S (2012/EUA). Antologia de terror criada por Brad Miska. Diretores: Adam Wingard ("Tape 56"), David Bruckner ("Amateur Night"), Ti West ("Second Honeymoon"), Glenn McQuaid ("Tuesday the 17th"), Joe Swanberg ("The Sick Thing That Happened to Emily When She Was Younger"), Radio Silence ("10/31/98").

Uma pérola pouco conhecida do grande público, Megan Está Desaparecida (Megan Is Missing, 2011), de Michael Goi, consegue extrair uma aura perturbadora ao relacionar duas adolescentes de 13 (Amy) e 14 anos (Megan), chats de internet e predadores sexuais. A trama é toda montada com arquivos pessoais e da polícia (um found footage raiz!) e o clímax é assustador.

O segredo do Lago Mungo (Lake Mungo, 2008/Australia). De Joel Anderson

A trilogia V/H/S – V/H/S (2012), V/H/S 2 (2013) e V/H/S: Viral (2014) – é uma antologia de terror found footage infelizmente muito pouco reverenciada. Os curtas, que giram em torno da temática de fitas snuff encontradas, vencem por agregar novas tecnologias ao subgênero, já desgastado nessa época, talvez bebendo da fonte do recém-lançado Black Mirror (2011), de Charles Brooker.

Comentários (10)

Ted Rafael Araujo Nogueira | quinta-feira, 15 de Outubro de 2020 - 13:56

O found footage surgiu como opção de linguagem - principalmente para o material do gênero terror - e deu um puta frescor no começo dos 2000. A perspectiva do amedrontamento posta em pauta através do olhar dos personagens. Some isto à mitificação das obras através de campanhas publicitárias espertas (caso citado do Bruxa de Blair) e aí estava uma fórmula marota para o sucesso. Incutindo medo fácil e o terror pela possibilidade de realidade das marmotas ali presentes.

João Vitor G. Barbosa | quinta-feira, 05 de Novembro de 2020 - 17:27

Acho que o found footage foi uma revolução de linguagem, mas não impressiona tanto mais porque, em tese, qualquer um pode ser cineasta com um smartphone. Uma espécie de found footage 2.0 foi o Buscando... (2018), interessantíssima atualização do gênero.

João Vitor G. Barbosa | sábado, 21 de Novembro de 2020 - 10:43

Coincidência ou não, Megan is Missing viralizou no TikTok. O timing desse artigo foi perfeito.

Maria José Barros | quarta-feira, 06 de Janeiro de 2021 - 12:59

Foi coincidência, João. Megan is missing é um dos meus found footages favoritos. A viralização só demonstra como o subgênero ainda não morreu. Prova disso é Host (2020).

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