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Ignorância e fascinação: o traçar lúdico de Dante

Não dá pra acreditar que o senhor é um adulto”, é a frase que ouve Lawrence Woolsey, um falido produtor de cinema B de terror, ao final de Matinée – Uma Sessão Muito Louca (Matinee, 1993). É pouco considerando que Woolsey literalmente põe abaixo o cinema da première do seu filme só para que o público pense, em plena crise nuclear cubana, que uma bomba atômica foi lançada sobre a cidade. Tudo porque, justifica ele, “as pessoas já não se assustam como antigamente”. Mas Woolsey não é um nostálgico, não perde tempo lamentando o olhar viciado do público que já não se emociona com os velhos truques. Ele sequer apreende esse fato. Não há espaço para saudade porque Woosley parece ignorar que o cinema que ele ama deu lugar a outro na fila de preferência das plateias; parece desconhecer o estado crítico da sua arte, interpretando-o apenas como uma etapa a mais na evolução do gênero. Tudo é alegria nessa ignorância, toda celebração é uma ode à teatralidade. Fica claro, ao transformar os corredores do cinema em seu picadeiro particular, que Woolsey se diverte mais que qualquer um em seu próprio espetáculo, ignorando a verdade do perigo como um desenho animado que ignora a gravidade. A farsa, blindada contra as leis mais impassíveis deste mundo, é sempre mais aprazível que qualquer realidade.

Apesar de ser um dos filmes mais fracos do diretor, Matineé diz muito sobre as leis que regem o universo particular de Joe Dante, não muito diferentes das que operam em um Papa-Léguas & Coiote. Como Lawrence Woolsey, Dante é um irresponsável que tem por objetivo o mais barato entretenimento e como veículo o cinema que tanto ama sem se dar conta de que talvez as audiências já não compactuem com o seu entendimento sobre o que, afinal, um “filme” deveria ser. A quem assiste, Dante parece mais um mímico que acredita piamente na existência do seu brinquedo invisível. Para que o público consiga compartilhar dessa loucura é preciso crença cega no absurdo da ideia, é preciso mergulhar no caracol de mecanismos ingênuos que ornamentam seu cinema e se deixar invadir por um ímpeto que a mente adulta há muito suprimiu.

Joe Dante começou no horror e encontrou casa no cinema oitentista de aventura, mas, apesar da superficial disparidade, a dinâmica que move um Piranha (idem, 1978) e um Looney Tunes – De Volta à Ação (Looney Tunes: Back in The Action, 2003) é exatamente a mesma. Na última cena de Piranha (resenhado por Vlademir Lazo aqui), dois personagens conversam sobre a possibilidade apocalíptica de as super piranhas modificadas pelo exército chegarem ao oceano. Barbara Steele, musa de Mario Bava e Anthonio Margheriti, rechaça a ideia para, em seguida, sorrir e olhar no olho do espectador, diretamente para a câmera, que corta para um plano do mar toscamente eclipsado por um filtro vermelho. Desde o início, Dante abraça suas referências e não as larga, mas ao contrário do que ocorre com um Quentin Tarantino, esse amor não se traduz em condutor para o processamento de uma grafia própria, nem reclama para si a necessidade de ser explicitado. O cinema de Dante não se define por sua “bibliografia”, ainda que a carregue consigo o tempo inteiro.

Para se ter uma ideia, ainda estudante, como um moleque que completa um álbum de figurinhas, Dante compilou trailers, clips, comerciais de TV e até vídeos institucionais do Governo num monstro de 7 horas de duração chamado The Movie Orgy (idem, 1968), produto que claramente deve mais à obsessão adolescente de um fãzóide do que ao próprio ócio puro e simples. Referências a Vampiros de Almas (Invasion of The Body Snatchers, 1956) e a Guerra dos Mundos (The War of The Worlds, 1953) pipocam por toda sua filmografia, personagens da era Jones da Warner Bros. aparecem a todo o momento no canto de um quadro ou através de uma vitrine, e eu tenho quase certeza de que Dante usou seu Matinée apenas como pretexto para poder filmar Mant (há uma versão contínua que pode ser encontrada no Youtube), a horrível história de um homem transformado em formiga gigante que aterroriza Nova York. O marasmo de Matinée parece denunciar a má vontade com que Dante encara esse cinema mais “normal” diante da notável riqueza de detalhes e do ritmo fervilhante de Mant, seu mimado filme B.

Sua linguagem particular se constitui através de um fanatismo que, de tão substancial, de tão homogêneo, não pode ser aplicado a um nome ou mesmo a todo um gênero, dissipando-se antes no verso do próprio ato de encenação. A Dante interessa antes o fascínio do cinema do que o cinema em si, antes o fascínio do horror do que o próprio horror. Tome o mecanismo de tensão em Piranha: basta um homem na água para Dante encenar a força que é suficiente ao filme, e basta que a água fique vermelha para que haja clímax. O gatilho do horror é tão somente um corpo em cena.

Em Grito de Horror (The Howling, 1981), é à ferramenta e não a seu propósito que a câmera se atém quando passeia os olhos sobre os detalhes da transformação do lobisomem, prendendo o público no deleite de cada garra e cada dente que o bicho lentamente desenvolve, porque o fascínio sobre o que aquelas armas podem causar não é algo a ser correspondido. A imagem implica o que não lhe interessa expor. Então, é só agora, de vagar, antes de um ataque que nem sabemos se vai acontecer (porque não importa), que se pode observar com toda calma e com todo medo possível os caninos do monstro, signos desse horror que o filme empenha, já que toda cena em que eles entram em ação é rápida e turva como um golpe. Se a morte é rápida, o seu ensaio é o que interessa.

A fruição do próprio fazer supera em muito o seu objetivo. É claro que todo cineasta enseja primeiro o prazer em filmar, mas há talvez um equilíbrio aí presente (em usar deste prazer como liga de construção, não como fim em si) que se corrompe. Dante é aquela criança que passa o dia montando e remontando um castelo de areia, ou uma ferrovia, ou uma cidade em miniatura, porque quando esta cidade ficar pronta, a diversão terminará. O propósito que se persegue, quando atingido, extingue o próprio motivo de sua existência. A diferença para todos os outros diretores de sua geração, seu maior defeito e sua maior virtude, é que Dante jamais se permitiu a esta descoberta. É até hoje o mais inconsequente e juvenil dos cineastas oitentistas americanos. Assistir a The Hole 3D (idem, 2009), seu último filme, é se deparar aqui com esta ambígua revelação: Dante não cresceu nada em um espaço de 30 anos. O deboche de um Gremlins (idem, 1984) é o mesmo que reverbera com força em Homecoming (idem, 2005) e The Screwfly Solution (idem, 2006), seus dois médias para a série Masters of Horror. Assim como em Piranha, em The Hole 3D é o objeto antes de sua execução, é o cinema como pequeno parque de diversões, um brinquedo que só entretém enquanto imitar a simplicidade alegre de um pião, carente apenas de um primeiro impulso para embalar-se sobre si mesmo.

Tudo responde a essa recreação própria do olhar. Para Dante, fazer cinema é brincar de trenzinho, rodando num ciclo infinito que se regozija a cada volta. Como ocorre em Viagem ao Mundo dos Sonhos (Explorers, 1985), de longe seu pior filme, onde três crianças montam uma nave espacial com sucata e rumam ao desconhecido em busca dos mistérios do universo. Quando chegam, descobrem que os alienígenas, supostos guardiões destes segredos, são também apenas crianças — crianças fanáticas por filmes e televisão. Dante entende que é mais divertido se o destino final dessa viagem for também seu ponto de partida, onde se encontra a mesma perspectiva infantil que se deixou para trás, porque então se pode começar tudo outra vez.

É assim que as animações de Chuck Jones e o cinema B de Roger Corman coexistem ao longo de toda a carreira de Dante, como iconografias que se amalgamam sob um ponto de ebulição em comum: o olhar infantil, que vê a tudo - de Pernalonga a Frankenstein (idem, 1931) - pelo mesmo prisma de entretenimento. O estranho cosmos que Dante habita parece mais uma combinação desses dois universos, de lápis de colorir e fumaça cenográfica. Há os extremos para um lado (Piranha e Grito de Horror), os extremos para outro (Looney Tunes e Viagem Insólita [Innerspace, 1987]), e as áreas de choque entre ambos. O humor de Gremlins e principalmente o de sua sequência (Gremlins 2 – A Nova Geração [Gremlins2: The New Batch, 1990]) é muito antes o humor do desenho animado que do terror, porque o horror do filme permanece sempre iluminado pela óptica do artifício, sem jamais incorrer na quebra de encanto de tentar atingir seu fim canônico.

O ponto confluente de todo esse aparato referencial é sem dúvida Meus Vizinhos São um Terror (The 'burbs, 1989), onde Dante escreve a fórmula exata do seu cinema: crianças em corpos de adultos que passam as tardes brincando de mansão mal-assombrada. O tempo inteiro é o fascínio do desconhecido, da expectativa infantil sempre capaz de enfeitiçar a realidade que toca, estabelecendo com sorte um motivo a mais para apertar a campainha e sair correndo. Já pouco importa se de fato os vizinhos possuem uma coleção de ossos no porão desde que esta suspeita baste para esquecer a modorra de uma rua sem saída, ajudando a vencer o tédio nem que seja preciso reinventar a rua inteira. É também o que basta a Joe Dante: insistir na brincadeira, na invenção de um horror que não exige se constituir em algum momento. Não se trata de sentir medo realmente, mas de encená-lo, ainda que sua origem seja por todos sabidamente fingida.

É esse medo o protagonista de The Hole 3D. No filme, dois irmãos encontram no porão de casa um buraco assustador que parece libertar fantasmas e dar vida a objetos inanimados, oportunidade para Dante reviver os truques mais rasteiros do horror sobrenatural, de referenciar a si mesmo (em Grito de Horror), a Halloween – Noite de Terror (Halloween, 1978), A Hora do Pesadelo (A Nightmare On Elm Street, 1984) e até Brinquedo Assassino (Child's Play, 1988). Mais tarde, descobrimos que as aparições no tal buraco eram manifestações do que cada um mais secretamente temia, porque é exatamente assim que o medo de um porão sombrio ou de uma velha mansão funciona, exigindo à imaginação que forje o cenário e engane olhos e ouvidos.

A escuridão é uma folha em branco. É nesse vazio entre o fascínio da ignorância e o fascínio da descoberta que se inscreve toda a mise-en-scène de Joe Dante, captada assim como um friozinho na espinha, uma história de acampamento. Dante não percorrerá jamais o caminho de Sam Raimi, de Steven Spielberg ou de Peter Jackson; está fadado a ser sempre o mesmo moleque que não vê os velhos carrinhos perderem a graça, despedindo-se aos poucos dos tapetes da sala para ocuparem o topo esquecido das estantes. É por isso que Joe está igual em Piranha, igual em Pequenos Guerreiros (Small Soldiers, 1998) e igual em The Hole 3D, porque assim como Woolsey, o produtor falido de Matinée, ele sequer suspeita da estrutura linear do tempo, celebrando cada filme como uma nova volta no trilho fechado que é seu cinema, vivendo-o sem a vaga ideia de que existe uma evolução possível e, portanto, um fim inevitável.

Para Dante, o cinema flutuará, acomodado eternamente neste espaço suspenso e imaterial de tempo: entre o arrepio do escuro e o acender da lâmpada.

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