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John Carpenter - Parte 2: A Depravação Farrista

Como o sarro é insubmissão contestadora

Os mais variados artistas passam por fases em suas carreiras que os delimitam — por escolha arbitrária de seus analistas externos muitas vezes —, seja artisticamente, politicamente ou acerca de outro recorte que o valha. No caso de John Carpenter, o sarro, a farra, o esculhambo acabaram por servir tanto como válvula de escape ao mosaico que o cercava política e moralmente, e como uma reflexão sua sobre a indústria do cinema. Por isso, por arbitrariedade minha, decidi meter um eixo temático que vinculasse três filmes seus: Aventureiros do Bairro Proibido (Big Trouble in Little China, 1986), Eles Vivem (They Live, 1988) e Vampiros de John Carpenter (Vampires, 1998). Nestes três o diretor inventa de meter uma farra grande nos mesmos com seu escopo crítico a se perpetuar em cada um deles, e faço uma crítica mais arrumada de cada um dos próprios, respectivamente, nos links ao fim deste texto.

As formas de expressão dum autor metamorfoseiam-se mediante várias questões. O Carpenter parte para o sarro como forma de maledicência e resistência de sua arte frente aos entraves que encontrara e por uma insatisfação política da sua cabeça, proposta com anarquia pelo seu cinema. Movimentando seus filmes nos escopos culturais, sociais, políticos e religiosos. De forma que o seu traquejo nestas questões seja evidenciado com a zombaria como arma e base, e não como algo aleatório nas obras. É um modo de operação escolhido por ele de começo, que traz coerência para o ridículo dos universos que propõe, por mais que suas colunas sociopolíticas e artísticas sejam provenientes dum mundo real em loucura e paranoia. Quer um exemplo fora do meu recorte arbitrário? O Che Guevara falsificado de Fuga de Los Angeles (Escape From L.A., 1996) representa o avacalho de Carpenter frente à perseguição estapafúrdia de conservadores aos mitos comunistas para torná-los monstros eternos e na mais fina ironia da coisa, já que o capitalismo acaba por se apropriar desta iconografia pra vender produtos por sobre o objeto. Ali o diretor molda seu filme mediante as marmotas que ele enxerga politicamente.

Se pegarmos a fita dos Vampirões, temos a chibatada anti-reza do diretor, onde o cara atesta que seria a Igreja Católica a responsável pela criação dos sanguessugas. Eles Vivem traz a prerrogativa dos alienígenas capitalistas controladores do modus vivendi da humanidade. No Aventureiros temos a mistificação dum universo ensandecido protagonizado pela imbecilidade saborosa, e testosteronizada, de seu protagonista. Ora, para as três obras a escolha narrativa é pelo humor do absurdo daquelas situações. Seja, respectivamente, pela grosseria iconoclasta, pelo escracho político ou pela sátira cultural. A metodologia de escolha dele serve tanto para se ridicularizar instituições e sistemas seculares – como Igreja Católica, indústria de cinema mainstream e sistema capitalista –, quanto facilitar o direcionamento de seu discurso mostrando o tamanho das piadas macabras que estamos acostumados a corroborar. Rindo nervosamente da formação daquilo tudo. Porque o ser humano é impelido a repelir discursos radicais como devaneios num primeiro momento, o que para tantos impede a verificação de veracidade da putaria mostrada, enquanto que, pelo prisma do humor, o mesmo espectador pode levar na sacanagem toda a marmota, mas a assiste com curiosidade e pode ser levado a pensar naquilo. Isso é tático. Eles Vivem é bem frontal nisso. Mostra a existência séria, e severa, da favelização e da absurda discrepância social de que temos conhecimento ao andar pelas ruas (a não ser que tu sejas uma peça de escritório que não perambule por aí em algum momento). A partir disso o Carpenter propõe a formulação dum universo absurdo como força motriz de crítica para problemas existentes. Que existem empresas e figuras políticas que agem, colaboram entre si e aramam esquemas que deixam de fora uma turma boa. Ou o sistema é tão ninja que se livra do pauperismo?

O Carpenter usa do exagero para a proposição desse humor funcionar. Por isso existe a conspiração alienígena maniqueísta em um, o segredo eclesiástico sombrio noutro, e a marmota exagerada do entrechoque de culturas num terceiro. Obviamente que facilitações de roteiro e grosserias outras são mais aceitáveis no absurdo porque se a verossimilhança interna for mantida, funciona. É a maravilha esperta do Carpenter. Desenvolver as alegorias pelo abuso e moldá-las através do canal da putaria. Isto mantém o espectador tanto por dentro do discurso quanto o entretém. Não sem deixar de causar o desconforto daquilo ali ter alguma fundamentação no real. Por isso a capilaridade da depravação visual interessa ao diretor – ela pode entregar o misto certo entre discurso e entretenimento.

A insatisfação dele é vista de maneiras diversas nestes filmes. O vômito imposto sobre um ala do conservadorismo cristão que enlameia a cultura com seus dogmas viciados; a catarse do discurso político grosseiro como marreta para atingir o espectador, ou a confusão primordial entre ocidente e oriente por uma visão terceirizada. No Aventureiros existe uma camada extra: o corte de orçamento e apressamento para lançar o material, avacalhando sua pós-produção. E deixou o Carpenter puto. Isto fica refletido na fita quando vemos um conjunto de pedaços de filme unidos para se montar o mosaico de quebra-cabeças avulso que lhe foi permitido fazer. O Kurt Russel fazendo papel de babacão dos anos 80 encaixa perfeitamente na sacanagem, sempre tapado e sem saber onde está se metendo. Cito este filme por ver nele o descontentamento crescente do Carpenter – tanto que a partir disso o foco do mestre foi desenrolar produções mais independentes. A insatisfação citada só se soma ao caráter inquieto do diretor, que usa os filmes como instrumento ideológico e político destas insatisfações. Isto é óbvio para a grande parte dos grandes autores críticos. Mas o caminho da sacanagem é mais específico, por muitos erroneamente levado no sambarilove (o que é um puta erro), já que uma interpretação errada de uma piada leva ao avacalho da intenção inicial. Por isso mesmo a mensagem era passada de forma tão acintosa. Com frases feitas e ideias estapafúrdias levadas a cabo grosseiramente.

É uma manifestação artística altamente válida e brutal, que procura um espaço de existência e resistência num universo que malogra ações e criações que fujam demais dos padrões previamente estabelecidos, que quando resistem e se sustentam, assim o fazem ou por teimosia venal ou por aceitação mercadológica. Por isso mesmo é deveras salutar o Carpenter ser um escroto de marca maior que, com seu traquejo (e sapiência do público que possui), divulga seu cinema, influencia gerações e mostra que alguns caminhos são possíveis, seja driblando barreira, derrubando portas ou mijando em cimas dos muros que o mainstream teima em querer opor em suas formas de controle.

Texto integrante do Especial John Carpenter

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