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O Casamento do Meu Melhor Amigo e Meus 10 Anos de Cineplayers

Para a turma que cresceu nos anos 1990 e desde cedo já amava cinema, não havia outro rosto estampando os cartazes nas locadoras e salas multiplex, nem outro nome feminino de maior peso do que o da atriz Julia Roberts. Para a indústria de Hollywood, ela foi um dos últimos longos reinados de popularidade e verdadeira estrela, dessas que as gerações acompanham ao longo dos anos sem jamais deixar que seja esquecida. Já para quem vivia do lado de cá da tela, acompanhando as reprises de seus filmes na TV aberta ou alugando suas comédias românticas em videolocadoras de bairro, Roberts foi um ícone de veneração, deslumbramento – a personificação dos clichês que tanto conhecemos em torno de ídolos da mídia e o fascínio que despertam no público. Rita Lee já dizia em sua versão para a música dos Beatles que “tem pessoas que a gente não se esquece nem se esquecer: um primeiro namorado, uma estrela da TV”. Me desculpem os primeiros amores, mas quem eu nunca esqueci dessa época foi a minha estrela da TV.

Pulo alguns anos agora para 2011, quando Julia Roberts já havia consolidado seu legado, ganhado seu Oscar, provado seu talento para além das comédias românticas e se cristalizava como uma dessas estrelas que o tempo não é capaz de tocar ou corromper. Eu acompanhava essa jornada, agora adulto, com o mesmo carinho que acompanhei ainda criança nos anos 1990. Eu também estreava como parte da equipe de críticos do site Cineplayers com um texto bem sem graça para o primeiro filme dirigido por Philip Seymour Hoffman, no qual arrisquei profetizar que seria o primeiro de muitos do ator atrás das câmeras, e que hoje sabemos que foi o único. Não importa meu chute errado. Eu estava feliz. O site que eu conheci lá em meados de 2005 e acompanhei o crescimento, onde fiz tantas amizades virtuais, onde formei a base do que sei até hoje de cinema, estava divulgando um texto meu. Eu não mereci aquela chance, pois nunca fui escritor profissional, ou crítico profissional, nem nunca me formei em cinema ou sequer em algo próximo da área. Mas graças à confiança que alguns depositaram em mim, pela primeira vez eu podia compartilhar com o mundo um pouco do amor que eu sempre tive pelo cinema. Para mim era o suficiente.

Para os que conheci durante os anos participando como leitor e usuário dos fóruns do Cineplayers, eu parecia particularmente estranho por ter como filme de cabeceira não algum título que se espera de um “verdadeiro amante do cinema”, como talvez um O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972) ou um 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968), mas sim uma comédia romântica de Julia Roberts pouco lembrada nos cânones da história: O Casamento do Meu Melhor Amigo (My Best Friend’s Wedding, 1997). Mas que sacrilégio escolher um filme desses como preferido! Não conhece John Ford, Yasujiro Ozu, Glauber Rocha ou Orson Welles? Se a predileção é por comédias românticas, nunca ouviu falar em Ernst Lubitsch, Billy Wilder, Howard Hawks, Woody Allen? Ah, como eu amava todos esses. Ainda amo. Mas não foram eles que um dia eu assisti na TV ainda criança e me apaixonei. Não foi através de um deles que eu descobri ser possível rir e chorar, ou se identificar e guardar num lugar especial da memória um simples filme. E durante muito tempo eu achei que isso fazia de mim uma aberração em matéria de cinema. Hoje, penso diferente.

Minha ideia com esse artigo está longe de querer lançar argumentos acadêmicos para elevar O Casamento do Meu Melhor Amigo a um nível superior de cinema, ou uma tentativa de redescobri-lo e dar a ele o valor que ele merece entre os amantes de cinema. Isso não caberia a mim. Correndo o risco de parecer apenas um bobo saudosista, estou aqui apenas na intenção de celebrar minha primeira década como redator da equipe Cineplayers, e eu devo isso a esse site que um dia me acolheu e aceitou que eu seria aquele da equipe que defende as comédias românticas que todos desprezam, e que enaltece a Julia Roberts que tantos outros nunca levaram a sério. Aqui, fui aceito por ser quem sou como amante dos filmes e como pessoa. Aprendi muito sobre cinema, sobre a linguagem, sobre análise, sobre as teorias, sobre os movimentos mais importantes e os mais desconhecidos, sobre os cineastas mais amados e os mais malditos. Aprendi a escrever melhor, a argumentar melhor, a me expressar melhor em palavras. Aprendi a lidar com as críticas, nem sempre favoráveis e muitas vezes maldosas. Aprendi a enxergar o cinema de outras perspectivas. Sinto que aprendi muito mais do que pude transmitir, felizmente para mim e não tão felizmente para os leitores. Mas se tem algo que eu sempre quis passar após tanto defender os filmes que ninguém liga é que cinema também é sentimento, e que a base para uma crítica interessante é a permissão que o escritor se dá para ser autêntico.

Não quero de forma alguma com isso resumir a função de um crítico de cinema a uma pessoa que simplesmente demonstra sinceridade em sua visão. Longe disso. Envolve muito mais em matéria de conhecimento, bagagem, postura, estudo, habilidade, talento. Mas o ponto de equilíbrio está em nunca trair a própria percepção subjetiva que somente o crítico como individuo pode oferecer. O impacto e resultado de um filme está na soma de suas características àquilo que o espectador tem dentro de si e como ele é capaz de preencher com sua própria bagagem de vida e visão de mundo. Logo, por mais que a gente descubra muitas obras-primas capazes de mudar toda nossa noção de cinema e tocar fundo no coração, como ocorreu comigo quando em contato com alguns trabalhos como Luzes da Ribalta (Limelight, 1952), (idem, 1963) e Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974), alguns outros filmes prevalecem em nós simplesmente por conversarem tão forte com nossa memória afetiva e pela capacidade de gerar identificação e empatia.

Conforme fui aprendendo mais de cinema nessa minha jornada iniciada em 2011, alguns filmes que eu antes achava irrepreensíveis foram perdendo um pouco do brilho, e ao passo que eu conhecia novos diretores fui deixando de lado outros que eu costumava priorizar. Normal. Faz parte. Alguns filmes e diretores que eu amava, no entanto, só cresceram no meu conceito à medida que eu aprendia mais e mais. O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1991), por exemplo, que inclusive completa três décadas de vida nesse mesmo ano que completo minha primeira década como redator do Cineplayers, já era na minha infância o terror favorito da vida. Tempos depois e uma enxurrada de outros filmes de terror que eu conheci desde então e o monumento de Jonathan Demme pra mim só cresce a cada revisão, se tornando cada vez maior conforme eu aprendo mais sobre cinema. O mesmo se dá com O Casamento do Meu Melhor Amigo, que só pareceu maior e mais original conforme fui aprendendo sobre comédias românticas, das clássicas às modernas.

Isso porque fui percebendo ao longo dos anos e das muitas revisões que O Casamento do Meu Melhor Amigo, na verdade, é a antítese da comédia romântica tradicional. O elemento do romance em si é figurativo, a caráter de pretexto, para que exista um ponto de partida, mas no fim das contas o que temos é uma protagonista beirando os 30 e que descobre que em menos de uma semana o amor de sua vida – a quem só assume como amigo – está de casamento marcado com uma garota rica de Illinois. A jornada de Julianne (Julia Roberts) é a de uma vilã: fazendo as vezes de madrinha improvisada, ela se vale do cargo de confiança para traçar diversos ardis e sabotar o noivado de seu melhor amigo, antes que a cerimônia se concretize.

Logo, chego à conclusão de que a gênese do filme de P.J. Hogan esteja muito mais associada às comédias malucas, ou screwball comedies, dos anos 1930/1940 do que ancorada na tradição das comédias românticas em que um casal supera obstáculos para permanecer junto no final. A lógica da comédia maluca é justamente a oposta, quando o casal se liberta das amarras do amor, experimenta a liberdade, se nega ao compromisso definitivo. A felicidade almejada na screwball comedy pode até incluir o romance, mas prioriza e valoriza antes de tudo a liberdade do indivíduo. Há em O Casamento do Meu Melhor Amigo um sentimento muito mais raro em risco, denunciado pelo seu próprio título: a amizade. Tão ou mais poderosa do que o amor romântico, uma amizade verdadeira às vezes é muito mais difícil de ser encontrada e por isso Julianne arrisca todas suas fichas para desviar Michael (Dermot Mulroney) do caminho ao altar.

As noções de moralidade nas instituições mais tradicionais da sociedade americana, como religião, casamento e família, sempre foram subvertidas por comédias malucas em que personagens femininas apresentavam a mesma – ou maior – inteligência do que as personagens masculinas, assim como independência emocional, financeira e social. Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938) e As Três Noites de Eva (The Lady Eve, 1941) são exemplos disso, com Katharine Hepburn e Barbara Stanwyck, respectivamente, subjugando os galãs Cary Grant e Henry Fonda em esquemas amorosos sem compromissos. Em O Casamento do Meu Melhor Amigo, a tradição do american way of life está preservada e ao mesmo tempo subvertida em George (Rupert Everett), editor e conselheiro de Julianne, bem sucedido, com uma casa em Hamptons e casamento marcado com seu noivo. Um personagem gay assumido, bem resolvido, e mais maduro e estável do que todos os demais. Com a então aproximação do século XXI, as relações sociais são novamente questionadas por uma comédia maluca e se reconfiguram as noções do amor verdadeiro: nem sempre ele será romântico, nem sempre ele será heterossexual (como discutiu também o belo A Razão do Meu Afeto [The Object of My Affection, 1998]). Mas isso não o impede de ser tão eterno e duradouro quanto àquele que assistimos em tantos finais felizes anteriores. Ao término, enquanto Michael e Kimmy (Cameron Diaz) fecham o arco de uma comédia romântica tradicional, casando-se e vivendo felizes para sempre, Julianne e George fecham o arco de uma comédia maluca, também firmando um pacto de parceria eterna de amizade e companheirismo em uma última dança.

Não consigo deixar de pensar que também talvez haja algo da comédia musical no coração de O Casamento do Meu Melhor Amigo. Ainda que não seja um filme musical propriamente dito, as canções que os personagens evocam ao longo da história trazem novas percepções para suas relações, e a própria abertura conta com um número musical à moda antiga, com noivas planejando o próprio casamento. Julianne e Michael têm sua própria canção, a romântica The Way You Look Tonight, sussurrada por ele no ouvido dela na cena mais melancólica do filme. Com George, a canção é a animada I Say a Little Prayer, cantada pelo elenco todo na cena mais cômica. Uma música remete ao sentimento, ao romance, enquanto a outra abraça a comédia pastelão. Não parece gratuito que nos momentos finais Julianne, vencida, opte por abrir mão de The Way You Look Tonight e a ofereça a Michael e Kimmy como presente de casamento, e que momentos mais tarde termine sua história dançando I Say a Little Prayer com George durante os créditos finais.

Essa volta toda que dei, rapidamente pincelando alguns pontos do filme que mais amo, foi para compartilhar com os queridos leitores que me acompanharam esse tempo todo um pouco do que eu aprendi em revisões – e que só poderia acontecer com o amadurecimento meu enquanto pessoa. Para quem me cobrou tanto uma “justificativa” para tê-lo como meu preferido, tenho aqui uma amostra, pois não me considero capaz de fazer um texto completo somente sobre ele. Uma das mágicas do cinema, e de muitas outras formas de arte no geral, é a capacidade que os filmes têm de se reconfigurar em revisões, com base no que projetamos neles conforme crescemos e amadurecemos. Pode ser que um dia eu reveja O Casamento do Meu Melhor Amigo em outra fase da minha vida e ele passe a não significar mais o que significa hoje. Talvez daqui outros 10 anos eu nem esteja mais aqui compartilhando minhas leituras pelo Cineplayers. Mas o cinema e a escrita também são guardiões de memórias, e ainda que muito se perca e muito se ganhe pelo caminho, tenho certeza que vez por outra passarei por aqui de novo para lembrar um pouco de todos vocês – e também um pouco de mim.

Obs: Josi, esse texto é para você

Comentários (2)

Alexandre Koball | sábado, 24 de Julho de 2021 - 09:21

Já falei no Facebook, mas deixo registrado aqui (que dura mais): parabéns pela trajetória, pelos números significativos e muito obrigado pelo conteúdo super rico.

Igor Guimarães Vasconcellos | sábado, 14 de Agosto de 2021 - 08:10

Só li agora, Heitor. Texo incrível. É massa ver esse sentido de aprender com o nosso caminho cinéfilo.
Fiquei feliz lendo!

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