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Artigos

Trilogia O Exorcista

Pazuzu, o maldito alimento demoníaco de nossas crenças.

“Eu sou Pazuzu, filho de Hanpa. O rei dos maus espíritos do ar
que sai violentamente das furiosas montanhas, sou eu!”

Inscrição nas costas de uma das estátuas de Pazuzu.

Pazuzu é uma entidade proveniente da Mesopotâmia, dos povos assírios e babilônios e, como tal, fora ocidentalizada no imaginário cristão — que recauchuta como pode material de outrem — e tratada então como ser infernal. Esta figura, originalmente, era um ser do vento sudoeste, da seca e da fome. Ajudava e era temido. Protegia grávidas. Defendia doentes e afastava espíritos ruins. E por ter um visual modificado, arraigado no animalesco, ainda mais pela cabeça de cão, fora usado como malefício antigo. Isso se deu pela representação dual de sua imagem. De pé com uma mão virada para cima e outra para baixo, esta contradição seria usada adiante na trilogia. A criação e a destruição. O bem e o mal. O maniqueísmo religioso clássico representado numa única coisa. E este escroto foi escolhido como antagonista mor da saga O Exorcista. Esse tinhoso fora adaptado de divindade mesopotâmica a demônio de exorcismo. O primeiro longa une estes elementos mostrando o Padre Merrin (Max Von Sydow) em escavação no Iraque – antiga Mesopotâmia –, onde se defronta com a estátua do perigoso. Este encaixe estabelece o pavor por um mal antigo, turvo, violento e macabro. O desconhecido do sobrenatural. Que não nos é tácito, contudo, está ao nosso redor. O diabo do Pazuzu.

Interessante como somos assombrados pelo inexplicável divino. Não o que nos assusta no real que cause desconforto e medo, mas o pavor que o místico constrói, que traz à tona os nossos medos e pecados e como estes mesmos podem ser exponencialmente julgados e massacrados por figuras que necessitam deles e de fraquezas outras com o objetivo de se alimentarem. Sim, nós alimentamos os demônios. Alimentamo-los com nossas convicções, rituais de defesa e sacrifício e com a fé. E o rabudo como um cara atrelado a todo tipo de esculhambação, logo dá o maior valor a uma fé. Independentemente de ser contrária a ele ou não. Do que seria uma criatura endiabrada sem a crença?

Fé não é somente o credo positivo, é o medo de queimar nas trevas, ou qualquer local circunstancial que o valha. Se tu acreditas que pode se lascar quando papocar fisicamente, tens alguma convicção no pós-morte. E tu alimenta, sim, o capeta. E ele agradece de volta. Pazuzu, como entidade diabólica (transformada nisso, que sempre se lembre), consegue atenção na fita primogênita através do dogma cristão acerca do bem e do mal, e num tabuleiro de ouija. Aquela casa propiciou sua vinda. E onde ele ataca? No elo elementar. Na inocência, na pureza. Uma criança. O choque brutal. O avacalhar das instituições familiares ante expor o pavor aos piores níveis. O poder da podridão infernal no corpo de uma menina de 12 anos. Envolvendo o calvário familiar, materno e sexual sobre uma garota. Ela e seus entes alimentaram convicções e fés em seres que estariam à espreita, diante da oportunidade dada. O ataque vem nos nossos principais medos. Do extremo, do obscuro, o que viola a carne por dentro e por fora. O malefício escroto. Profundo, seminal, etéreo, todavia sempre vivo e à espera.

O Exorcista (1973)

Desde já somos apresentados a um ambiente desértico onde um padre se encontra com uma estátua macabra que causa um misto de ansiedade e desconforto no que tange a se saber o que diabos aquilo significa. Na primeira parte desta saga satânica, temos o original encontro do desungido com uma família estadunidense comum e periférica. O maligno acorda no corpo de uma criança e é nela que sua manifestação é um estraçalho mental, social e coletivo naquela família. Baseado em best-seller de William Peter Blatty, que o adaptou ao cinema confabulando toda a podridão e violência pensada pelo Friedkin.

Obra de impacto cultural absurdo, que em grande parte ganhara tal força pelas escolhas de direção de um fenomenal William Friedkin, que corajosamente abriu a caixa de ferramentas do assombro demoníaco, nos dando uma obra de um peso no horror quase inalcançável, agindo dentro dos espectros sensoriais mais íntimos dos espectadores. Utilizando-se de um exemplar acervo de artifícios do horror. Jumpscares, aparições demoníacas e até um telefone. Seboseira, medo, pavor, nojo e o sexual profano. Estabelece um novo padrão no consumista médio de cinema quanto ao estrago das instituições sociais tão caras a si. Tudo isso embalado por este malevolente asqueroso em cenas inesquecíveis, citadas e discutidas ad infinitum pelo cinema. Num ambiente de vistosa pressão psicológica delimitada pelo espaço de uma casa onde paulatinamente vamos adentrando em limites menores até nos apertarmos num quarto sem fugas. Os exorcistas e o espinhoso infernal. O diretor aqui imprime o horror sob o gore tanto quando pelo espaço físico. Ficamos todos presos aos planos – ora médios, ora fechados – moldados naquele local com um som ensurdecedor e de quase se sentir o odor nauseabundo do enxofre do vômito verde expelido. Estamos diante do mal.

Friedkin cria uma atmosfera de opressão absurda, não vista antes, onde o mal presente jamais fora tão absoluto, pesado e blasfemo. Ataca não somente nossos instintos mais concretos, no entanto, também o lastro racional de nossos costumes. Palavrões. Linguagem chula, a contrariedade do que prega a igreja católica nos termos de comportamento e conduta moral. O lance é escancarar o maniqueísmo. O ruim exagerado contra o – suposto – bem dos padres, o experiente que já lidou com o monstro e o jovem relutante que perdera a mãe. O sarnento existe pela doutrina e usa a mesma na fraqueza dos outros. Pazuzu ataca medos e ânsias dos personagens. Ele é a personificação do mal no corpo daquela criança. E age de forma amoral, expondo joguetes e fraquezas pessoais dos personagens afim de destrui-los mental e fisicamente, como faria com o padre Karras (Jason Miller) e sua mãe. Além da dor física, o caráter de fim é o objetivado. O grão-tinhoso quer a destruição dos crentes que o alimentam, porque isso o diverte, o infla. O mantém vivo. Porque o sujo não se alimentaria daquilo que podemos entupi-lo? A fé.

O Exorcista II - O Herege (1977)

A continuação da obra-prima de Friedkin tinha grande responsabilidade. O sucesso do original revirou o terror como conhecíamos e catapultou o subgênero do terror sobrenatural a patamares não alcançados. O encarregado seria John Boorman, que seguiria um caminho absolutamente distinto da primeira parte, fazendo transformações na abordagem e amainando demais a violência, o que o fez ser massacrado pela crítica e defenestrado pelo público, algo que o próprio diretor mesmo assumira como erro anos depois. Porém, numa releitura, possui ideias e rimas interessantes, e a escolha por seguir um caminho distinto enriquece a saga, mesmo que seus minutos finais sejam usados como apoteose repetitiva e exagerada daquilo que o anterior tinha finalizado de maneira genial.

Há um certo clima desde o início no conflito entre Ciência versus Igreja. Foco em Regan, que segue sua vida com acompanhamento médico. E um novo padre é encarregado de perscrutar a morte do Padre Merrin do filme anterior e representa o pároco impuro, assim como ele se considera, algo que seria fundamental na sua jornada. Ele entra em conflito com a médica de Regan, que afirma que não existe exorcismo e sim hipnose e doença mental. A coisa chega num ponto burlesco no qual se utiliza uma máquina que adentre na galera e permita o contato com o desconhecido, num usufruto interessante do recurso de sobreposição de imagens, é verdade. É quando a briga entre as duas searas se diversifica. Regan e as premonições. Fogo. Os poderes de Regan. Dons. Por isso o bicho a atacava. Todos estes elementos se conflitam o tempo todo criando uma atmosfera confusa, sim, porém entendível e crível em alguns pontos. Visualmente decente, é bom citar. Ora, mediante a brutalidade acontecida no original, ainda havia lacunas a serem inventadas na resolução daquele problema, Boorman sabia disso até certo ponto e preferiu trazer um tom detetivesco em conluio com terror e isto acaba por funcionar se caíssemos nesta confusão. Relações estranhas do mal. Há também uma relação do Coisa-Ruim com uma nuvem de gafanhotos na África. Aqui outra lombra. Uma praga, com o mal se espalhando. Como isso encaixa na relação com o Pazuzu? O vento. Como citado no começo do texto, este porco sujo é a divindade do vento, que carrega os males e os espalha. O espaço é etéreo. Tem suas raízes noutro continente e quando convocado, fora, na América.

A dualidade continua com um teor de exposição alto que aqui busca forçar sofisticações. Algumas ousadas. Os reflexos nos espelhos no apartamento de Regan são um bom exemplo. As versões de si perambulando nos espelhos. A visão rebuscada da África. Cores quentes, tons alaranjados caminhando para o vermelho. Trajetória dificultosa. Suada. Uma certa referência visual perante relação ao primevo encontro de Merrin com o Bode Preto. Isto na jornada do padre Lamont (Richard Burton) pelo autoconhecimento e expiação própria pelo trauma do exorcismo inicial desta segunda história, no qual ele se culpabiliza por seu fenomenal fiasco, a morte de uma moça e seu assombro com a situação. O trauma. A subida de um labirinto vertical de pedras como o caminho da expiação. Do sacrifício. De uma procura por uma redenção não dada. A intenção era de se fazer diferente do original, tanto estética quanto tematicamente. Boorman quis impor um tom de bruxaria e profanidade sem a violência sexual e frontal de Friedkin. Mais suspense pesado que terror propriamente dito. Acabou por fazer um troço esquisito. Indeciso no que quer. Entretanto, com excelentes ideias. Manteve a gênese diabólica à sua maneira, expandindo as relações desse capiroto com seus humanos e elencando, novamente, o maniqueísmo entre as forças de sempre.

O Exorcista III (1990)

A derradeira parte da saga O Exorcista já vem com outro tom, algo salutar, obviamente. Feito com livro próprio – “Legião” – e adaptado para ser uma continuação da saga. Algum tipo de gambiarra? Feita pelo próprio autor dos livros William Peter Blatty, que assume a cadeira de direção da fita. Abraça frontalmente o esquadrinho policial como fio condutor da narrativa. Cria um clima calcado na realidade visual mais próxima do usual conhecido, ao contrário do tom opressivo e demoníaco do primeiro e da porralouquice lisérgica do segundo. Uma espécie de terror investigativo sóbrio com um braço coerente no extranatural. O relacionamento com o divino se daria forma mais introjetada ao que é interno, e não pelo espalhafatoso.

A dicotomia entre as forças clássicas é justamente definida na trilogia ao redor da entidade principal. Pazuzu tem uma história antiga vinculada ao maniqueísmo dentro de si, quando mito divino mesopotâmico representava tanto o bem quanto mal, os filmes sempre retrataram isso de formas diferentes. A obscurescência da violência do primeiro em sua diferenciação clara; a confusão do segundo e um aumento da mitologia e certo debate entre ciência e reza; e neste terceiro a razão do ceticismo contra o misticismo, além dos usufrutos imagéticos de todas as obras. Esta última no uso de imagens sacras ao denotar emoções e tensões. Inteiras – devoção – e quebradas – prefácios da morte. Isto num limiar de ataque num hospital, com direito a um contra plongée sensacional do tenente e de uma alma dominada pelo monstrengo no teto. A razão procurando a loucura e achando o maligno. O beiçudo no aguardo do ataque, e desta vez faz questão de dissimular seu jogo lidando com o caráter intempestivo do tenente. Como um sacana que é, esse capeta mantém seu modus operandi distribuindo provocações à espera do desespero de outrem, sempre se divertindo com todos os instintos cruéis aflorando passando por cima das vãs tentativas de manutenção racional, por parte de seus detratores. A provocação com o retorno do padre Karras é um exemplo crasso disso.

De fato, este terceiro material segue o caminho de fechamento de ciclo mesmo. Um ciclo cinematográfico irregular, com uma obra-prima insuperável no quesito assombro e impacto cultural, com duas continuações muito distintas, e inferiores claro, que possuem ambas ótimas ideias e algumas execuções falhas, mas sempre mantendo um interesse pelo todo. Consegue-se atrelar o cinema à desgraça intangível e transferível, que nos remete a uma procriação de selvageria nossa frente ao diferente que nos avacalha.

Aquilo que se transmuta de divindade ambígua à demônio do cão. A figura que trazia calamidade de início era dúbia e transformada fora porque o âmbito católico não permite seres entreatos, seres fora do maniqueísmo padrão, simplesmente por não aceitar que aquilo considerado malévolo não possua uma visão mais azeitada em relação as suas ações. E Satã? Ambíguo? Anjo caído que pune os escrotos e leva a culpa por tudo de ruim por um serviço feito à contragosto. O pé-de-gancho aqui citado, Pazuzu, passa por este processo com citações de sua origem, só que com planos de ação sempre ordinários numa clara abertura ao ocidente e seu modo de lidar com seus anseios, rituais e monstros próprios.

Nisso tudo não paramos de crer. O ateu não crendo nada não o torna superior, não compõe espaço de escapatória, está entre os possíveis vitimados. Ele simplesmente fica fora do espectro como um ignorante útil. Por isso que eu não sou porra nenhuma. Sou o nada. Mesmo assim tem algo que nos aguarda. Não devemos nos preocupar. O mal sempre vai voltar. Tem Pazuzu pra cacete perambulando, dentro e fora dos infernos.

Texto integrante do Especial Monstros no Halloween

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