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Desventuras no Festival do Rio - 1ª Parte

Todo ano é a mesmíssima coisa: verificar a conta bancária, arranjar o máximo de tempo disponível, conciliar sessões, cinemas e outros fatores (como deslocamento de um bairro para outro), enfim, otimizar ao máximo possível esta época, que é o verdadeiro manjar dos deuses para cinéfilos de carteirinha (ou não, já que a cidade praticamente pára para ir ao cinema).

Não é por menos. Esse ano serão apresentados 436 filmes de 60 países (116 filmes a mais que o ano passado!), neste que vem dando passos largos para se tornar o principal festival de cinema do país, o Festival do Rio. Do dia 23 de setembro ao dia 6 de outubro passarão nomes consagrados na telona apresentando seus novos trabalhos, como Lars Von Trier (Manderlay), Gus Van Sant (Last Days), Fernando Meirelles (O Jardineiro Fiel), Jim Jarmusch (Flores Partidas) e tantos outros.

Entrada de La Sierra, Medellin,
no Centro Cultural da Justiça Federal

Mas o festival não é só formado por figurinhas de prestígio. Nas vinte e duas mostras (isso mesmo!), filmes de vários diretores desconhecidos  ou restritos tentarão obter seu lugar ao sol. Há também a mostra competitiva de filmes nacionais, que esse ano promete ser acirradíssima, com destaque para dois filmes que foram apresentados na mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, Cinema, Aspirinas e Urubus e Cidade Baixa.

O Festival teve sua abertura, na verdade, na quinta-feira, com a apresentação da cinebiografia Vinicius, sobre nosso poeta, fechado para convidados. Para o público em geral, o festival começou mesmo ontem, dia 23, quando passou, ao meio-dia, o filme israelense Ushpizin, na sala 1 do Estação Botafogo.

Como faço todos anos (esse é o meu terceiro festival consecutivo), preparo meu programa e tento seguir a risca o planejado - é impossível assistir a 1/3 dos filmes do festival! - e qualquer alteração no programa desestabiliza qualquer planejamento. A primeira baixa veio com Caché, do Michael Heneke (o mesmo do ótimo A Professora de Piano, neste novo trabalho que passou em Cannes), que não chegou, foi cancelado e substituído. E lá vamos nós reprogramar todo o dia de sexta-feira (Caché tava programado para às 19 horas; era para ser a principal atração do dia). Troca filme, encaixa horário e muitas horas depois quebrando a cabeça, fecho novamente a programação do final de semana (quero dizer, não toda, porque ainda há buracos no sábado e domingo a serem preenchidos).

Mais uma de La Sierra, Medellin

A sexta-feira não começou muito animadora. Tempo nublado e chuva torrencial em seguida davam a entender que São Pedro não daria muita folga aos saltimbancos cinéfilos como eu. Chuva era a pior coisa que poderia acontecer no dia. Mas, para a alegria de todos, ela se dispersou.

Mochila nas costas, bolsa de viagem nas mãos, câmera fotográfica e celular, guarda-chuvas comprado às pressas e muita disposição, chego ao Rio. Problema número 1: encontrar o Centro Cultural da Justiça Federal. É na Cinelândia, fácil de chegar, mas onde fica o bendito lugar? Vários minutos tentando e finalmente o encontrei. Aquele lugar seria o palco das minhas três primeiras sessões (um dos locais mais baratos do Festival, apenas quatro reais - e para quem paga apenas meia entrada, apenas 2 reais, uma pechincha!).

Inicia-se a projeção do filme La Sierra, Medellín com pouco atraso ao horário marcado, 13:15 horas. Se as cadeiras não são lá as mais confortáveis - logo mais para quem programou para o dia 12 horas de cinema - o filme se revela provocador. Da mostra Doc Latino, dirigido pela dupla iniciante Margarita Martinez e Scott Dalton, o filme colombiano do ano passado surpreende ao acompanhar a vida de três jovens em uma favela dominada por facções paramilitares que disputam o poder do narcotráfico no local. Com momentos cômicos, cenas absolutamente surreais (uma, particularmente, é marcante, praticamente tragicômica), sem deixar de apresentar cenas chocantes e de impacto (para nós, brasileiros, nem tanto, já que também passamos por situação parecida), só não é melhor porque é convencional demais, nem todos os personagens acompanhados tem a mesma força e a edição poderia ter sido um pouco mais caprichada. Mas surpreendeu.

Rascunho desta matéria,
no fim do dia.

Quem surpreendeu também, mas pelo lado negativo, foi a produção da HBO Fé Desviada, da mostra Dox. Indicado ao Oscar de melhor documentário, esperava que fosse o melhor do dia (e pelo qual eu deixei de ir assistir a Era Uma Vez em Tóquio, no MAM). É um filme absolutamente conservador para um tema tão explosivo, o abuso sexual por padres católicos em uma pequena cidade americana. Tony Comes é um bombeiro feliz, bem casado e com belos filhos que possui um grande trauma no passado: ele passou parte de sua adolescência sendo molestado pelo seu professor de religião. A mão frouxa do experiente diretor Kirby Dick deixa seu personagem criar cenas que me pareceram forçadas e inverossímeis. O tema é atualíssimo e rende boas discussões. Mas o filme é fraco.

O terceiro filme do dia, também da mostra Doc Latino, é KordaVision. Um tema muito mais leve e fácil de digerir. Apresentando a carreira do genial fotógrafo cubano Alberto Diaz "Korda", famoso por ter tirado aquela fotografia marcante do Che Guevara, que virou um símbolo da cultura pop. Cheio de momentos ternos, tantos outros tocantes, sem deixar de apresentar o trabalho de Korda para os não-iniciados, o filme se perde apenas quando, já perto do final, assume um lado marqueteiro-institucional desnecessário e incompreensivelmente mal inserido. Ficou feio. Mas Korda é absolutamente carismático - o filme foi todo feito antes da morte dele, em 2001 - e arrancou aplausos da platéia ao final da projeção, mais por causa do personagem que do filme. Destaque para a participação de Fidel Castro no longa.

Terminados os filmes do Centro Cultural, hora de ir para o cine Paissandu, no Flamengo, para começar a assistir aos filmes de ficção do dia. Em Minha Terra, da mostra Panorama, dirigido pelo John Boorman (o mesmo de Amargo Pesadelo), foi o primeiro. Uma lástima. Apresentando os julgamentos da Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul, que julgou os crimes cometidos durente o Apartheid, o filme é sem foco, sem tom e com uma dupla romântica desnecessária e sem qualquer química (Juliette Binoche em seu pior papel, fazendo par com o Samuel L. Jackson de sempre). O filme se arrasta e só não é perda total por causa do ator Menzi Ngubane, que é um bom alívio cômico em um filme que não deveriam ter alívios cômicos ou charopadas românticas. Deu sono.

Espaço Unibanco de Cinema
se esvaziando.

Próximo local de parada: Estação Botafogo. O filme? Poeira Vermelha, do desconhecido diretor Tom Hooper, também da mostra Panorama. Uma total incógnita para mim, que só entrou na lista por causa do dia fraco. Com uma dupla de protagonistas talentosos, a duplamente oscarizada Hilary Swank e Chiwetel Ejiofor (de Coisas Belas e Sujas e Simplesmente Amor),  me deixou pasmo ao saber que se tratava sobre... a Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul! Inacreditável coincidência. Mas diferentemente do filme anterior, este é sério, bem produzido e interpretado (e com um argumento muito próximo ao antecessor). Chiwetel protagoniza e está correto, sem deixar maiores impressões. Swank está correta no papel da advogada que retorna às raízes para fechar feridas do passado e quem acaba brilhando é o desconhecido Jamie Bartlett, uma espécie de Paul Giamatti no corpo de James Gandolfini, que rouba a cena em um papel super dramático. Uma agradável surpresa em um filme que, se não impressiona, pelo menos cumpre seu papel direitinho.

Última parada do dia: Espaço Unibanco de Cinema, também em Botafogo, o provável cinema mais agradável da cidade e que, neste ano, cedia a central do festival. Quase meia-noite, chego na bilheteria e me deparo com "sessão encerrada" para o filme Três... Extremos, composto por três curtas de importantes diretores orientais, entre eles Park Chan-Wook (o mesmo de Oldboy). Resignado, tive de voltar para casa e descansar, porque amanhã outros cinco filmes me esperam. Até!

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