III SINISTRO FEST 2024 - DIA 005 – 13/10/2024
III SINISTRO FEST - Quinto dia de exibições
(Foto: Ted Rafael, arte de Ispaide Idilécio - Ispaide Studio)
A violência existe como pressuposto moral de poder por sobre o outro. Através dela que se autoriza formas de controle. Seja um destroço simbólico, moral, econômico, político ou propriamente físico. E, obviamente, o terror/horror se agarra nisso como forma de expressão estética. Porque, de fato, somos compelidos a sentirmos um tesão pela agressividade no cinema? Inclusive por pessoas pacíficas? A adrenalina dos corpos sujos serve como motivação do extremo. Não somente pelo exacerbo de um sensacional gore, mas pelas pancadas sofridas pelos corpos, afinal a violência é ativadora instintiva daqueles que por uma conveniência moral não abraçam a destruição por conta de um contrato social com o coletivo que assim os impele. E este citado destroçamento cinematográfico serve de escape para estes instintos. Como somos racionalmente treinados para controla-los, fica um questionamento interno sobre o porquê diabos o tesão por sentir medo e pelo acesso à brutalização é de tão assaz interesse? E tome III SINISTRO FEST.
Katie's Skin (Katie's Skin, 2024). De Steven Schloss. Foto: Divulgação
Katie's Skin (Katie's Skin, 2024). [Estados Unidos 10min]. De Steven Schloss.
O filme versa como um apelo à uma espécie insanidade vaidosa que vai ao ápice da destruição da carne para se provar. Inclusive num movimento esperto antes de sua metade. Mesmo que seja considerado um chavão nalguns momentos, aqui é bem encenado e divertido. O caso da gêmea escrota. O filme inclusive não usa deste esquema para vender uma surpresa, mas sim como uma proposição de encenação, desespero e desconforto dos torturados. Ao não querer inventar a roda, acerta ao lidar com elementos conhecidos de forma competente. Planos em detalhe da comida buscando causar algum tipo de ânsia que traga a pergunta do que diabos tem naquela casa. Jantar do Casal. O cara engasga. Garfada e garrafada na cara. Katie maluca? Outra pessoa. Nem busca um preparo mais idiossincrático que seja para exercer a segunda presença dessa irmã canalha, coisa que de fato nem se precisa tanto. O lance aqui é o apelo à violência como forma de expressão mórbida e funcional. Um material bem honesto diante daquilo que quer tratar. O abraçar no bizarro é motivação fluída para a existência do destroçamento adquirido.
Por Ted Rafael
Não Precisa Pedir Desculpa (Não Precisa Pedir Desculpa, 2024). De Franco Cavezale.
Foto: Divulgação
Não Precisa Pedir Desculpa (Não Precisa Pedir Desculpa, 2024). [Brasil, 17min]. De Franco Cavezale
Um fantasma abre o filme. Um ser misterioso e assombrado, sem gênero definido. Descobre-se, ao longo, que um dia aquela mata foi palco do assassinato de uma travesti. A morte ronda aquele lugar, não há de se confiar em todo estranho que abre a porta para você, ainda mais se você esquece de cara as relações trabalhistas que te levaram até ele. Violências atrás de violências, até a culminância da morte. Não a do fim e do esquecimento. A do Tarô, a da transformação do corpo, da jornada e do ser. Um homem trans, pela morte, encontra a justificativa da vida. Mas eu não sei ao certo o quanto há de se justificar tantas outras coisas. Pois o filme também existe num limbo de “dívidas” do cinema universitário, de um diretor dissidente de gênero, para com o cinema legitimado pelo meio. Há de se justificar que os personagens são maus e hipócritas pelas mesmas caracterizações heteronormativas e atos de violência sequencialmente em cena, que o personagem deve anunciar seu gênero pela fala e não por outras performances de masculinidade, que a igreja deve voltar como mais um trauma a ser desafiado na jornada de vingança, que a transformação fantástica não basta por si só e a narrativa só pode encerrar quando se abdica de algo. Não se precisa pedir desculpa, mas seguir inserindo sua linguagem nas regras do curta narrativo para que ele consiga ser visto.
Por Nathan Ary
House on Wheels (House on Wheels, 2023). De Klim Tukaev. Foto: Divulgação
House on Wheels (House on Wheels, 2023). [Rússia 30min]. De Klim Tukaev.
Corredores e escuridão. Sci-fi. Drogas e lombras? Experimento. A fantasia vira realidade, promete o médico. Fuga da realidade. Imagem com arte esverdeada. Semi-tétrico. Governo autoritário. Grande estado. Escala de distorção da verdade. Boa fotografia. Joia. Usa bem os espaços abertos. Melancolia. Tudo isso aqui solto acima está neste curta-metragem russo, que para além de sua capacidade técnica para uma demonstração crível e decente de um mundo distópico, há o caráter subitamente filosófico da importância do debate entre verdade, ilusão e memória. O autoritarismo tem diversos exemplos que apontam para um controle sociocultural através da formatação da história e no fabrico de memórias. Em como o cidadão deve receber informações e os modos com os quais ele deve se comportar diante delas. Tudo galgado em controle envernizado popularmente como justificativa para a ordem. O que torna interessa a ida do protagonista para ser entorpecido por uma memória anterior a um descalabro. Este já havia deixado de lado quaisquer focos de resistência ao regime no qual havia sido contrário. Pelo menos numa primeira camada. Parte para o relembrar de momentos ternos com sua esposa ainda viva. É mais salutar se entregar a ilusão do que o enfrentamento da realidade? O que o move é saudade que o entorpece com a desesperança da perda. O clima de sujeira em cores frias deixa isto ser atestado visualmente, assim como resquícios de uma grandiloquência anterior serve como lembranças de um passado antes de revolta social e resistência, para uma taciturnidade que só consegue ser alimentada por memória retroalimentadas que possuem um significado de ilusão do tempo presente – mesmo que o custo ainda seja alto –, mas que não possuem resolução tácita nenhuma para o que o protagonista tem a frente. O que mais lhe sobra é desalento.
Por Ted Rafael
O Solar dos Prazeres Noturnos (O Solar Dos Prazeres Noturnos, 2024).
De Matheus Marchetti. Foto: Divulgação
O Solar dos Prazeres Noturnos (O Solar Dos Prazeres Noturnos, 2024). [Brasil 30 min]. De Matheus Marchetti.
Entrar em uma casa mal assombrada com uma câmera e se dar conta de que se está virando tão imagem quanto aquele que você grava. Tentar captar a maldição, e cair em outra no processo. O aprisionamento é inevitável, mas também previsto, talvez até desejado. Quem não quer ser eternizado em um retrato? Não é assim muito fácil definir se o desejo não é só mais um tipo de maldição e o sangue não é só mais um tipo de tinta. Capturar a maldição em tela. A da pintura e a do cinema. Se somam e tentam até se mimetizar, mas cada uma tem seus limites. Parece fazer parte dos tais prazeres noturnos, essa busca do filme em entender toda imagem como um quadro bidimensional a ser pintado. Claro, quadros muito bem resolvidos em suas coreografias, seus desenhos de luz, suas emulações de desgraça vitoriana hereditária. Mas, ainda assim, só telas a serem pintadas. Não há diferença entre o olho do filme que tudo vê (passado e presente) e a câmera do entrevistador. Sem muito esforço para escapar do romantismo, pelo contrário. Som então, não se entende aqui algo muito além de acordes ensaiados. Não há um lugar de imprevisibilidade que ele possa atuar. Mas se a profundidade não está em um primeiro momento na imagem, está no invisível. Em como a morte (que é, primordialmente, também uma ação do tempo) se comporta. Circularmente, vivos e mortos ocupam o mesmo espaço e compartilham sequências dos mesmos enquadramentos, indo e voltando. Passado e presente são quase uma coisa só. A doença da família não é linear, de pais para filhos. Tudo parece ir ficando doente junto. A ação do tempo é só uma peça pregada pela montagem. O filme na verdade se move mais ou menos a partir do desenvolvimento do desejo. A partir de o quanto pode nos fazer desejar ver a próxima imagem. O fascínio e o tesão não excluem o medo, mas o transformam, dão novos rumos para ele. No final é menos um relato da vida de um “Escher” e mais um ensaio sobre tudo que os Usher podem ser.
Por Nathan Ary
Apotemnofilia (Apotemnofilia, 2023). De Jano Pita. Foto: Divulgação
Apotemnofilia (Apotemnofilia, 2023). [Espanha 10min]. De Jano Pita
A terminologia apotemnofilia [do grego: amor por amputações] emerge para dar significado clínico a atração sexual latente por deficientes que, no limite, levaria o indivíduo desejante a querer se amputar. Portanto, a apotemnofilia não é o mero devotismo, mas a projeção do desejo sexual fetichizado pelo corpo amputado que se volta para a própria imagem corporal do indivíduo desejante. (GAVÉRIO, 2021, p56) [1]
Olhão. Tirando lente de contato. Mulher se maquiando ou desmontando a maquiagem. Vozes do extracampo. Conflito de casal? Criatura problemática. Há todo um trabalho acerca dessas vozes citadas, onde o que parece ser de fato um conflito externo, interno ele o é em exatidão por envolver diretamente a protagonista Clara. Baixa autoestima. Depressão pós-parto? Alucinando? Clara sai ou não? Body horror. Automutilação. Vermes saindo da perna dela. Que porra é essa que a acomete? A nomenclatura da fita tem a afirmação de ser uma condicionante sexual acerca do tesão por amputação/amputados/ser amputado. O filme se aproveita dessa prerrogativa para se impor como um processo de automutilação que só consegue existir como transfiguração tesuda pelo próprio corpo através de uma amputação. E para conseguir gerar ainda mais impacto narrativo, aplica a intencionalidade do problema mental. Ele tem visões. Os vermes anteriormente citados. Algo que a leva a cortar a própria perna na ânsia de matar os vermes e sentir finalmente um pleno prazer – tal qual a condição citada assim exprime. Concomitante a isso, uma equipe externa que trabalha com a figura, a espera e tergiversa acerca da culpabilidade de Clara para cumprir um compromisso de trabalho seu. E o escalonamento do destroço só cresce. Acaba por querer se utilizar algumas escolhas criativas como o plano em contra plongée pela perspectiva da ferida da perna de Clara. O que antes era uma discussão por necessidade da presença dela num espetáculo, virara um acusacionismo exacerbado, enquanto a volátil Clara parte o estraçalhamento carnal. E tem aqui um gore altamente caprichado, dando tamanho à atrocidade corporal praticada. Apesar do filme propor determinados tropos ao filme – tais como insanidade e vaidade –, a condição da Apotemnofilia é mais conhecida por seu âmbito de regozijo sexual pela amputação. E quanto a isso o filme fornece a atuação visceral de sua protagonista que vai num construto de crescimento de dor e apavoramento sobre sua própria ilusão (as vozes de começo provenientes de fora de seu camarim fazer uma metáfora interessante, via enganação do público, com as vozes imaginárias com as quais ela tem de lidar para praticar a decepação de um membro seu). E este processo é alimentado com violência e aumento de debate do lado de fora. O conflito externo se conflagra com a mutilação do interno. Clara estraçalha. E finalmente profere algo a elevar seu tesão: "Eu me sinto bonita".
Por Ted Rafael
Texto parte da cobertura III SINISTRO FEST 2024.
NOTAS
[1] (GAVÉRIO, Marco Antônio. ESTRANHOS DESEJOS: A PROLIFERAÇÃO DE CATEGORIAS CIENTÍFICAS SOBRE OS “DESEJOS PELA DEFICIÊNCIA”. Educação em análise, Londrina, v.2, n.1, p. 52-74, jan/jul. 2021. Disponível em: https://www.ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/educanalise/article/view/42320/29995
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