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Denys Arcand, Obra Documental Completa (1962-1981)

O cineasta canadense Denys Arcand foi documentarista por 20 anos antes de se lançar no cinema em 1986 com O Declínio do Império Americano. De 1962 a 1981 realizou doze filmes, entre curtas, médias e longas-metragens, todos sarcásticos e terrivelmente bem-humorados, sobre assuntos diversos, desde o nascente interesse dos canadenses pelo vôlei até filmes-propaganda dos parques nacionais da costa leste canadense. Têm pouco interesse para quem não conhece a história do Canadá, mas é um presente para quem gosta de cinema.

Engajado, então esquerdista convicto nos conturbados anos 60 e 70, é na política que vai fazer seu melhores filmes. Um de seus alvos foi o governador Maurice Duplessis, um ultra-conservador e católico ferrenho que arruinou o país nos 13 anos que esteve no poder. Duplessis queria manter o Canadá um país rural, católico, com famílias numerosas e as mulheres em casa cuidando dos filhos. Para tanto, elegeu um inimigo: a luz elétrica, segundo ele a causa de todos os males da nação.

Arcand se esbalda fazendo seu perfil em Québec: Duplessis e Depois (1972), hilariante longa contando a saga dessa era que entrou para a história do país com o nome de A Grande Treva (La Grande Noiceur), por conta do combate à luz elétrica. Duplessis chegou a banir da cidade o proprietário do primeiro bonde elétrico de Montréal. Racista, impediu a entrada dos judeus no Canadá. Na época com 7,5 milhões de habitantes, o país viu 1,5 milhão deles imigrarem para os EUA por conta de uma grande fome ocorrida nos anos 30 com o crack da Bolsa de Nova York.

Arcand é um esteta. Todos os seus filmes têm acabamento impecável, até mais que os de hoje, quando o diretor experimenta mais e está mais solto. Tudo é refinado e de bom gosto, com trilha sonora que é um show à parte, mas não é isso que justifica o interesse em sua obra.

O Canadá vai enriquecer com a saída de Duplessis e à chegada ao poder do Partido Québécois (o PMDB canadense) num período chamado de Revolução Tranqüila, época de tamanha prosperidade que vai levar o Canadá ao G8, o grupo dos oito países mais ricos do mundo. Aproveitando os abundantes recursos naturais do Canadá (petróleo, ferro e água em abundância), o Canadá construiu gigantescas hidrelétricas que impulsionaram a indústria metalúrgica (Alcan e Alcoa são canadenses) e a automobilística, aproveitando a energia elétrica (logo ela...) barata e farta. Em 1976, Montréal abrigaria as Olimpíadas exibindo toda a sua pujança econômica. O país se redime do passado racista (chegou também a proibir a entrada de chineses) e se abre aos imigrantes.

No entanto, e aí começa a brilhar Arcand, a riqueza impulsionou o nacionalismo mais tacanho e, como a parte francesa foi a mais beneficiada com o progresso, começou o movimento pela independência na nação francesa. Erro grave. Há fuga de investimento para Toronto (hoje a maior cidade e a mais rica) e os imigrantes rumam para a parte inglesa. Resultado: os franceses, que eram 60% do Canadá, não passam de 22% da população e o Québec é apenas o terceiro estado em importância.

Arcand conta tudo isso com humor ferino. Atinge o ápice em O Conforto e a Indiferença (1982), talvez seu melhor longa documental, implacável estudo sobre a derrota, em 1980, do referendo que disse não à separação do Canadá. Como a esquerda da época, Arcand era soberanista, separatista, militante da classe média por um assunto que mobilizou a população por anos, gastou um dinheiro enorme e só causou tristeza, discórdia, atraso e ressentimento. Enquanto a indústria da parte francesa agonizava, os intelectuais só pensavam (a indiferença) em se tornar o 18.º país mais rico do mundo, “do tamanho da Holanda!” (o conforto).

Vendo os documentários, percebe-se por que Arcand se decepcionou tanto com os ideais esquerdistas da década de 60. O acerto de contas será em 2003 com As Invasões Bárbaras, onde Arcand reúne os amigos e juntos avaliam os erros sem jamais perder o bom humor – um dos atores do filme, Pierre Curzi, é também porta-voz do Partido Québécois e um dos mais inflamados separatistas do Canadá, apesar da segunda e definitiva derrota do outro referendo, feito em 1995.

Vale dar uma olhada também em delícias como Parques do Atlântico (1967), um filmete propagandístico sobre os parques nacionais da província da Nova Escócia, no extremo leste. “Não mandaria para lá nem o pior dos meus inimigos”, diz Arcand. Tamanha acidez causou problemas para Arcand, que teve seu On Est au Coton (1976) sobre a opressão dos trabalhadores da indústria têxtil, censurado pelo órgão estatal do cinema que encomendara o filme. Nos quatros DVDs que compõem as duas caixas de Denys Arcand – L’oeuvre documentaire intégrale, há a versão censurada e a versão original, além de um outro documentário sobre a censura, com Arcand relembrando às gargalhadas como sofreu na época para conseguir liberar seu filme.

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