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Artigos

Filmografia comentada - Charles Chaplin

As imagens em movimento do cinema apresentaram ao mundo, a partir da virada do século XIX para o XX, uma nova perspectiva para a canonização de mitos. Rostos e formas ganharam sua representação moderna, projetando-se na grande tela que surgia como um espelho do mundo, de fatos e emoções que o movimentam diariamente.

Foi Charles Chaplin um dos primeiros mitos a serem eternizados por esta arte ainda tão recente. Suas obras encantam gerações desde os primórdios do cinema, com a criação do mágico personagem Carlitos, com o qual representou em dezenas de curtas desde 1914 - quando no cinema ainda não ouvíamos falas, apenas víamos gestos, luzes e sombras.

Nos filmes de Chaplin, hoje temos um retrato significativo de fatos decisivos do século passado. Desde sua primeira incursão nos filmes de longa-metragem, em 1921, Chaplin fizera do cinema uma arte para defender seus ideais políticos e sociais, suas ideias humanistas que questionavam o lugar do homem no mundo contemporâneo.

Em reconhecimento à importância do cineasta, o Cineplayers organizou um artigo especial com comentários sobre os 11 longas dirigido pelo autor, de 1921 a 1967, entre os quais estão algumas das mais significativas obras-primas da história,  fundamentais para a compreensão do papel do artista no cinema, e do cinema na vida. 


 

O Garoto (The Kid, 1921) 

Disparidades sociais e o amor são temas fundamentais para Chaplin. O abismo que separa ricos e pobres é pincelado a todo instante nessa que seria uma das grandes marcas do cinema do diretor. A mãe a princípio pobre que abre mão do filho. A mãe já rica que pratica a caridade. O pai adotivo pobre que, pelo amor, cria o menino abandonado. A raiva de uma criança por não ter os brinquedos doados ao garoto do título. O atendimento mecanizado dado aos pobres pelo médico. A ganância do dinheiro, pelo qual vale roubar ou separar uma criança da pessoa que o criou. E, em meio às claras diferenças entre os abastados e desafortunados, entre as distorções do capital tão bem abordadas posteriormente, o sentimento que une todos os seres humanos: o amor. É aquela mensagem de esperança, para mostrar que é possível, não só nos sonhos, a harmonia e a felicidade.

- Emilio Franco Jr.

 

Casamento ou Luxo (A Woman of Paris: A Drama of Fate, 1923)

O primeiro grande risco que Chaplin correu – largou seu personagem mais famoso, dirigiu seu segundo longa, e primeiro drama sério, sem atuar e sem o aparato do burlesco, confiando apenas em sua grande musa, Edna Purviance.  Poucas vezes até então um diretor tão popular como ele se arriscava em um terreno fora de sua zona de conforto, e ousava brincar com temas e situações que fugiam de encontros com finais felizes, assemelhando-se mais a uma crônica de costumes, com direito a todos os elementos clássicos do melodrama. Arriscou despir sua melancolia costumeira de artifícios cômico-visuais, livrando-se das gags e do estilo pastelão para colocar em evidência o sofrimento e a beleza na tragédia – assuntos que normalmente deixava em segundo plano, quase implícitos. Aproveitou essa oportunidade para criticar a burguesia através do realismo (em uma época em que a alta sociedade era romantizada pelo cinema), experimentar com imagens (como insinuações de ações ocorrendo no extracampo), dar pulos na linha do tempo de seus personagens, filmar um strip-tease, e redescobrir alguns elementos já costumeiros em seu repertório. Casamento ou Luxo marca a fase de um gênio se reestruturando, amadurecendo e partindo para o momento em que começaria a entrar definitivamente para a história.

- Heitor Romero

 

Em Busca do Ouro (The Gold Rush, 1925) 

Para falar sobre Em busca do ouro é sempre bom lembrar que, de acordo com André Bazin, este filme apresenta uma evolução moral e psicológica de Carlitos. Evolução que é sentida no comportamento mais sentimental e na malandragem mais comedida da personagem. Isso quer dizer que Carlitos ainda sobrevive de seus ardis, mas sem deixar transparecer qualquer falta de bondade. Logo, é preciso notar que Carlitos é uma personagem mais complexa do que se imagina e que não era um perfeito exemplo de boa índole (Bazin, de novo) antes de Em busca do ouro. É, portanto, na obra de 1925 onde, de fato, ele aparece como um bom sujeito, mas é também onde seu status de vagabundo parece aflorar de maneira ainda mais estruturalmente orgânica, pois “o vagar” aqui é tudo aquilo que a natureza oferece. As intempéries de uma região gelada empurram o protagonista para a riqueza, mas, mesmo assim, Carlitos nunca deixa de ser uma peça frouxa dentro da engrenagem social, e a prova disso está na cena em que ele, já rico e em pleno happy end, aparece (depois de ter ficado claro que a vida de luxo está mais para seu parceiro, Big Jim McKay, do que para si) vestindo trapos que nada têm a ver com a sua atual condição, e protagonizando, a meu ver, um desfecho mais irônico que inocente. Grande! E, de quebra, traz a “dança dos pãezinhos”, o cozido de bota...

- David Campos

 

O Circo (The Circus, 1928)

Talvez a grande qualidade dos filmes mudos de Chaplin seja reunir elementos universalmente cômicos com mensagens sutis e ingênuas sobre o amor e a vida. Em O Circo, esses elementos estão presentes a sua maneira, como por exemplo na hilária cena do leão que está quase sendo acordado pelo cachorro latindo, enquanto o Vagabundo, de dentro da jaula, pede desesperadamente que ele fique quieto, ou então a belíssima cena em que ele desce de um poste batendo asas para sua musa. E aí está a magia de Carlitos. Os circos, que desta vez dão tema ao filme, já se foram, não têm sombra da força que tinham quando o filme foi feito. Porém, a ação do tempo em nada afetou a obra: a comédia segue pueril e inteligente, bem encaixada, tematizada e, principalmente, com tom social, atual, de sentimento intocável, romantizada, mesmo com tantas alterações nos costumes da sociedade; e tudo isso sem ofender ninguém, ainda que tenha algumas cenas que hoje seriam consideradas de gosto duvidoso (mulher apanhando do pai; Carlitos roubando comida de criança...). Há muito o que se falar de O Circo para pouco espaço, e olha que nem citei a viajante no tempo falando ao celular... Ah, e prestem atenção na canção de abertura: é o próprio Chaplin que a interpreta.

- Rodrigo Cunha

 

Luzes da Cidade (City Lights, 1931)

Luzes da Cidade talvez não seja o filme mais engraçado de Charles Chaplin, nem mesmo o mais inteligente, mas é difícil dizer que não se trata de seu trabalho mais emocionante. Claro que a história do vagabundo que se apaixona por uma florista cega tem seus momentos de pura genialidade cômica, provindas daquele humor típico de Chaplin, em uma mescla perfeita de ingenuidade e do uso impecável da pantomima. São incontáveis gags, algumas até infantis e cartunescas, que geram risadas ainda hoje, mais de oitenta anos depois. No entanto, aqui, o cineasta vai além, construindo uma história de amor que encanta. Em Luzes da Cidade, todos os esforços do vagabundo são para ajudar a florista, mesmo que ele jamais seja reconhecido por sua amada. É o amor em sua forma mais pura e ideal: altruísta, pensando mais no bem do outro do que de si mesmo. Assim, quando, em um dos finais mais lindos do Cinema, a moça já curada de sua deficiência se dá conta de quem era seu benfeitor, é quase impossível evitar o nó na garganta ou uma lágrima fugidia. Quem diria que também poderíamos nos emocionar com aquele adorável – e apaixonado – vagabundo?

- Silvio Pilau

 

Tempos Modernos (Modern Times, 1936)

Tempos Modernos é um filme chave na carreira da Charles Chaplin. Mesmo sendo um dos aristas mais conhecidos e bem remunerados do cinema, ele já contava com 47 anos, estava há cinco anos sem lançar um novo longa-metragem, e o som, que já era uma realidade consolidada, ameaçava perigosamente a sobrevivência de Carlitos, seu icônico personagem. Chaplin viu na grave crise econômica americana no início dos anos 30, o tema perfeito para fazer o seu ponto de virada, tanto narrativo, quanto tecnológico. Aproveitando algumas ideias de À Nos a Liberdade, clássico francês de René Clair, lançado em 1931, Chaplin fez de Carlitos o retrato do homem daquela época: faminto, desabrigado, um elemento a mais nas linhas de produção fabris, cada vez mais automatizadas e desumanas (daí a bela metáfora inicial em que Chaplin sobrepõe a imagem de homens se deslocando para o trabalho a um rebanho de ovelhas). Tempos Modernos tem alguns problemas de estrutura (os vários sketches cômicos nem sempre contribuem para o desenvolvimento orgânico do arco narrativo, e o final, ainda que poético, é abrupto demais). De toda a forma, todo o início ambientado na fábrica é genial (a sequência em que Carlitos é literalmente engolido pela engrenagem das máquinas pode ser vista, até mesmo, como uma alusão ao próprio cinema, já que seu movimento se assemelha ao do filme dentro de uma câmera), e a mensagem humanista está mais atual do que nunca.

- Régis Trigo

 

O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940)

Toda obra de importância histórica merece ser analisada em retrospecto, e fazê-lo no caso de O Grande Ditador revela a grandiosidade de Charles Chaplin. Em 1937, ano de início da produção, todo o mundo assistia, entorpecido, à intimidadora ascensão de Hitler por a) um misto de medo e cautela e b) não ciência das barbáries do regime nazista. Pouquíssimos se posicionavam abertamente contra tamanha truculência, tornando a produção um risco não apenas à saúde financeira do artista (o alto orçamento de US$2 milhões foi todo custeado por Chaplin), mas à vida de uma pessoa que, sozinha, não recebeu mais que palavras de incentivo em particular – frente a tantas outras declarações públicas desencorajadoras, de embargo inclusive – para a realização de um filme tão ousado. No ano de seu lançamento, 1940, a guerra já era uma realidade que acuava a todos, mas não ao cineasta, que nas telas se aproveitaria da semelhança física entre Carlitos e Hynkel para ridicularizar um ditador megalomaníaco, estabelecer uma parecença que extrapolava a esfera física (a infância difícil, entre outros aspectos comuns em Chaplin e Hitler) para acentuar a discrepância no âmbito comportamental, compondo sua sátira mais política e eloquente. A despeito de várias cenas emblemáticas, destaca-se a rendição do artista mudo ao som, que, além de ciente da necessidade do diálogo naquele contexto de urgência, comprova sua genialidade ao servir-se do poder da oratória, ferramenta utilizada como disseminação do ódio por Hitler, para atacar o objeto de sua crítica com as mesmas armas, porém subvertidas numa mensagem de paz. Chaplin, então, abandona o personagem (tal qual aposenta Carlitos, outro feito simbólico), quebra a quarta parede, fita o público com olhos marejados e destemidos e brada um dos mais importantes, emocionantes e, certamente, o mais corajoso discurso da Sétima Arte.

- Rodrigo Torres de Souza

 

Monsieur Verdoux (idem, 1947)

“Um assassinato faz um vilão. Milhares fazem um heroi”.

O golpe desferido contra o totalitarismo em O Grande Ditador não bastou a Chaplin para que silenciasse suas impressões sobre a bestialidade da guerra. A partir da genial ideia de Orson Welles de escalá-lo como um assassino de viúvas que sustenta a família com os crimes, neste filme ele criaria sua obra mais pesada e deprimente, destoando de seu tradicional estilo que mesclava com leveza o melancólico e o agridoce, pelo qual registrava a dor dos miseráveis sem perder a esperança nas qualidades humanas dos que os cercavam. Em Monsieur Verdoux, produzido logo após o término da Segunda Guerra, retornamos a uma Europa fria e cinzenta, às vésperas da crise que precedeu o combate, onde Chaplin reencena um mundo falido tanto economicamente quanto moral e eticamente. Se o olhar crítico do cineasta antes atacava o regime autoritário dos ditadores europeus, em Verdoux nem mesmo o modelo democrático vigente em seu país (os EUA) é poupado: militarismo, nacionalismo; fascismo; o filme é dedicado a tudo que provoca desigualdade, violência, guerras e mortes. É um mais duros retratos do período, onde não existem herois e o desconforto inibe qualquer riso sem uma mínima sensação de culpa e desespero.

- Daniel Dalpizzolo

 

Luzes da Ribalta (Limelight, 1952)

Os filmes feitos para narrar a própria morte deveriam ser levados a uma categoria outra de cinema. Não se encontra em algum momento que não este de um Luzes da Ribalta, O Homem do Oeste, Gran Torino, a versão mais simples e bela do seu artista; no que ele acredita, o que ele defende, a teoria de sua arte. Bem mais que um réquiem portentoso pra algum final autocondescendente, cada um destes filmes questiona seu espaço no mundo, e por mais que agrade aos teoristas fabricar lugares dignos para acomodar toda forma de arte, é a comédia que guarda, do degrau mais baixo da escala, um ponto de vista certeiro. Um comediante de stand-up já disse que, se o homem pensar bem, descobrirá que não há nada realmente para se fazer ao longo da vida, e que o seu trabalho consiste simplesmente em distraí-lo deste fato (para preveni-lo, entre outras coisas, de cortar a própria garganta). Talvez exista uma perspectiva nobre, mais romântica do que as outras, em relação à arte, ao cinema e ao próprio Luzes da Ribalta na qual preferimos confiar com o tipo de fé só votado aos mímicos e prestímanos, mas não vamos poder dividi-la com Chaplin. Seja o pianista, o palhaço ou a bailarina, no fim tudo é o circo de pulgas.

- Luis Henrique Boaventura

 

Um Rei em Nova York (A King in New York, 1957)

“Chaplin é sempre Chaplin, mas agora é apenas Chaplin”, escreveu André Bazin sobre Um Rei em Nova York na época de seu lançamento, sobre o fato de após Chaplin ter usado o vagabundo para criticar Hitler em O Grande Ditador, criado o anti-vagabundo Monsieur Verdoux e tirado a própria máscara com o Calvero, de Luzes da Rilbalta, sobra agora apenas o ator Chaplin, sem mais disfarces, sem mais simulacros, sem mais personas. O que poderia fazer de Um Rei em Nova York um Chaplin por assim dizer menor na verdade confere ao filme certa relevância; se agora é apenas Chaplin, também é um filme sobre Chaplin, com a figura análoga de um homem deslocado espacialmente encontrando os estranhos costumes do país onde passa a residir, onde um filme abarca em uma comédia ácida de costumes, ainda que irregular, e posto esse terreno, um segundo ato todo dedicado à paranoia comunista que expulsara Chaplin dos EUA. Filme sobre Nova York feito na Inglaterra, filme sobre um cômico forasteiro sendo vítima do fanatismo político de seus residentes; Um Rei em Nova York pode não ser um Chaplin dos mais inspirados, mas a pessoalidade imprimida ao material, ainda que não tenha a beleza precisa das gags antigas, torna ao menos necessária testemunhar o canto do cisne do Chaplin-ator, um rei que nunca teve um centavo sequer – mas que sempre foi majestoso até em trabalhos menores.

- Bernardo D. I. Brum

 

A Condessa de Hong Kong (A Countess from Hong Kong, 1967)

É possível se emocionar e se divertir mais com as suas obras mudas, porém os filmes falados que Chaplin lançou demonstram um cineasta mais maduro em seu ofício, fazendo a cada novo trabalho um avanço significativo em sua filmografia. Em A Condessa de Hong Kong, a resistência por parte do público sempre foi grande também por ser um dos raros que dirigiu em que ele não é o protagonista: o filme se resume basicamente ao magnata interpretado por Marlon Brando perseguindo avidamente a bela prostituta encarnada por Sophia Loren durante a viagem de um navio. Com um roteiro concebido originalmente nos anos 30, A Condessa de Hong Kong é para a época em que foi feito de um anacronismo mais próximo de um Lubitsch (é um dos filmes mais safados de Chaplin) ou Preston Sturges (pensemos em As Três Noites de Eva) do que qualquer coisa associada a Chaplin, o que causa um curto no espectador, tornando a sua visão ainda mais comovente (além de ser bastante engraçado como comédia maluca). É também um ajuste de contas com o lado romântico do cineasta, que depois de Luzes da Cidade ele pareceu abandonar ou manter secreto em virtude da faceta política dos seus trabalhos seguintes. A Condessa de Hong Kong é um dos mais belos filmes crepusculares do cinema.

- Vlademir Lazo

Comentários (15)

ADEMAR FERREIRA BESSA | quinta-feira, 16 de Maio de 2013 - 15:08

😁Falar do grande, magnifico CHARLES CHAPLIN, é chover no molhado. HOMENAGEM mais do que justa, pois o homem é um GÊNIO, encantou e encanta ainda hoje.

Anderson de Souza | quinta-feira, 16 de Maio de 2013 - 19:32

Seria legal se anexassem esses artigos, tanto de pessoas como de filmes, nas suas respectivas fichas.

Lembro que Boaventura fez um para a Trilogia De Volta Para o Futuro, mas só fui ler quando assisti os filmes, e pra achar esse artigo me deu dor de cabeça.

Luan Castro | domingo, 19 de Maio de 2013 - 03:35

bem interessante, que venha os próximos...

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