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A Cinemateca Brasileira se segura

Arquivo dos Consagrados Façanhosos

Cinemateca Brasileira. Largo Sen. Raul Cardoso, 207 - Vila Clementino, São Paulo - SP. Foto por Didão Barros.Cinemateca Brasileira. Largo Sen. Raul Cardoso, 207 - Vila Clementino, São Paulo - SP. Foto por Didão Barros.

A Cinemateca Brasileira – lotada em São Paulo – voltou a ser notícia após a nomeação da Regina Duarte para sua chefia após sair da Secretaria de Cultura na gestão Bolsonaro. “Vou fazer cinemateca”, ela disse. Mostrando não ter um mínimo conhecimento daquilo que seria a cadeira a ser ocupada. Nisso o governo Federal estava na opção de rescindir o contrato da instituição com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP). A responsável pelas atividades da casa desde 2018. Diante desta situação crítica o site Cineplayers propõe breve artigo que analise a importância artístico-histórica da maior instituição de preservação cinematográfica do Brasil.

Nos finalmentes dos anos 30 o pensamento era montar um local para exibição e discussão acerca do cinema. Eis que em agosto do 1940 fora idealizado como a Fundação do Clube de Cinema de São Paulo. Por algumas figuras lideradas pelo grande professor e crítico Paulo Emílio Sales Gomes e por Francisco Luís de Almeida Sales.

Paulo Emílio Sales GomesPaulo Emílio Sales Gomes

Acervo de latas cinematográficas da Cinemateca BrasileiraAcervo de latas cinematográficas da Cinemateca Brasileira

Laboratório de Restauração Cinematográfica da Cinemateca BrasileiraLaboratório de Restauração Cinematográfica da Cinemateca Brasileira

Uma instituição perambular no tempo, espaço e nomenclatura. Clube de Cinema nos anos 40; Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP) nos 50; Sociedade Civil Cinemateca Brasileira com apoio da Sociedade dos Amigos da Cinemateca desde 1962 – associação destinada a cooperar na constituição e manutenção do acervo. Etc. E logo na entrada já teve que lidar com a bonecagem da censura no Estado Novo, tendo de fechar as portas. De começo. Sua história perpassa exatamente pela deambulação existencialista sendo literalmente rebolada dum lado a outro como se fosse um filho indesejado. Reabre, e a partir de 1957 começar a passar por alguns dos seus piores percalços. Os incêndios. 4 no todo. O último, em 2016, resultou numa lastimável perda de 1000 rolos dos filmes em nitrato – altamente inflamável como é, teve protagonismo em todos os incêndios – de 700 filmes. Isto se dá devido à falta dum local ideal com temperatura ajustável. Falta verba e estrutura. Mesmo com todas estas intempéries, soma-se a estas a censura citada, somente para citar outra marmota. No mais, sobrevivera na marra à 19 presidentes – inclusive 2 ditaduras – junto a incorporações à diversos braços estatais no poder público. Uma casa resistente.

Ganga Bruta (1933) de Humberto MauroGanga Bruta (1933) de Humberto Mauro

E o acervo? A importância inestimável desta arquivística pode ser medida por vários aspectos. Quer os números? Pois tome aqui alguns dos próprios. 200.000 rolos cinematográficos dos mais de 30.000 títulos da casa. Mais de 3.000 fitas VHS. 1.000.000 de documentos sobre o nosso cinema, entre certificados de censura, roteiros, revistas, livros e cartazes. Destes últimos até exemplos do fabrico e esboço dalguns, tal qual o exemplo dum croqui do cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Filmão do Glauber. O esboço duma obra prima. 180.000 rolos 16 milímetros com reportagens e telejornais diversos de décadas igualmente distintas. Os cinejornais do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), da governança estadonovista do Getúlio Vargas se fazem presentes. Este material, por sinal, ia ser desovado num lixo qualquer, quando a cinemateca tomou de conta dele. Inestimável para nossa História. Há também extenso conteúdo da extinta TV TUPI, criação do Assis Chateaubriand. Diversos materiais esportivos do Canal 100, principalmente futebol. 7.000 fotografias de filmes nacionais e internacionais. Uma coleção de filmes altamente cosmopolita. Desde os ciclos regionais dos anos 30 às pornografias dos 80, para citar um recorte de 50 anos. A importante sala de exibição. Mais de 200.000 pessoas usaram-na exibindo a história do cinema nacional, além das mostras internacionais de alguns dos seus grandes autores.

Croqui do cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Feito com caneta esferográfica. Por Rogério Duarte. Croqui do cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Feito com caneta esferográfica. Por Rogério Duarte.

Cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Por Rogério Duarte e arte final de Luís Carlos Maciel.Cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Por Rogério Duarte e arte final de Luís Carlos Maciel.

Além dos números o que mais ostentamos? As meritórias filmografias de diversos movimentos da obra nacional, tais quais o Ciclo de Cataguases nos idos de 1920 com figuras tais quais o monstro Humberto Mauro – o avô do cinema brasileiro como afirmara tão eloquentemente certa feita o outro gênio Glauber –  em obras precursoras como (esta do pós-ciclo) Ganga Bruta (1933), também pertencente ao acervo. Passando pelas Chanchadas da Atlântida e Vera Cruz dos 40 e 50 fazendo graça e tirando sarro com Oscarito e Grande Otelo esbanjando vultosa esculhambação da boa. Seguindo a chama violenta do nosso cinema, trazemos o pré-cinema novo do Nelson Pereira dos Santos estourando o país junto a materiais de excelência, conforme Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957) são provas vivas disso. Seguindo adiante temos o Cinema Novo de Glauber Rocha e seus chapas. Assim como a turma do Cinema Marginal (de Invenção) com Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, passando pela criação do horror nacional do José Mojica Marins, o nosso Zé do Caixão, e o galerão da boca do lixo nas pornochanchadas e filmes policiais diversos , como a farra viva de Bacalhau (1976), de Adriano Stuart que aqui comete uma sátira erórita e sacana sobre o sucesso do Tubarão (Jaws, 1975) do Steven Spielberg. Em seguida vem a pornografia, com títulos do naipe da nomenclatura de A Quebra Galho Sexual (1986), de José Miziara entre outras brincadeiras. Sem esquecer dos curta-metragens dos mais variados artistas produzindo em tempos de vacas em coma. E também o material da criação e reinvenção na retomada. Ou seja, a cinemateca abraça o que é nacional com vontade. Sem restrições. A história do nosso cinema pulsa naquela instituição e devemos permitir que uma reles canetada avacalhe a mesma?

Ilha das Flores (1989) de Jorge Furtado.Ilha das Flores (1989) de Jorge Furtado.

    A Quebra Galho Sexual (1986), de José Miziara; Bacalhau (1976), de Adriano Stuart; Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla
A Quebra Galho Sexual (1986), de José Miziara; Bacalhau (1976), de Adriano Stuart; Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla

E o fomento e resgate? Cineclubismo nos anos 70. Num período de recrudescimento político, tínhamos na cinemateca um foco da resistência que ajudou a criar diversos diretores e artistas variados vinculados ao audiovisual. Uma ação de difusão do material nacional através da instituição. Não devemos deixar que o logradouro atual do estabelecimento – mesmo local desde 1988 por doação da prefeitura paulistana sob a batuta de Jânio Quadros –  em suas motivações laborais originais perdure. Ora, o prédio era um matadouro, então não deixemos o cinema papocar e ser abatido. Comparação marota de presente para o leitor. Ao invés da morte, ali é um local de ressuscitação fílmica. Além da manutenção do acervo absurdo, temos o Laboratório de Restauração. Resgatando obras desde sua criação em 1978. Reunindo retalhos de todos os jeitos, imagéticos e sonoros, a montar uma amálgama dos esquecidos em forma de celulose. Salvaguardando materiais de importância absurda tais quais as restaurações de obras do Glauber, através de parcerias diversas. Barravento (1962) e Idade da Terra (1980) são duas obras do mestre recauchutadas pelo laboratório.

Glauber RochaGlauber Rocha

Mesmo com todas estas questões significativas, o descaso sempre é presente. Latente. Corrosivo. Por isso existem os teimosos para registrar o que ocorre naquela casa para que se haja uma defesa visceral dela. Alguns exemplos são cineastas preocupados se debruçando sobre a própria para mostrá-la ao Brasil. O curta Nitrato (1975), de Alain Fresnot segue a linha denuncista do abandono, enquanto anos depois viria outra obra a tergiversar uma descrição da nova casa e das novas dificuldades noutro documentário, desta vez capitaneado por Ozualdo Candeias. Obra de alcunha literal e objetiva. Cinemateca Brasileira (1993). Existe uma preocupação dos cineastas e não só de seu legado, mas da sétima arte viva como um todo. E o retorno disso sempre é prazeroso.

O próprio Glauber já aloprava que queria seus filmes preservados naquele prédio. Ele sabia que seu legado estaria protegido. Com muita vontade. Quer o retorno citado do parágrafo anterior? O terror. Zé do Caixão fizera sua obra mais contundente esteticamente em 1970, e esta fora totalmente proibida pela censura do Regime Militar e até teve seus rolos caçados com promessas de destruição física devido ao tom moralmente subversivo imprimido pelo velho Zé. Finalmente a fita fora exibida nos anos 80, mas sumira. Daí em diante o Mojica perdera acesso. Adivinhem onde ainda havia uma cópia? Encontrada e encaixada para exibição. Na Cinemateca, ora. E que diabo de filme era esse? Ritual dos Sádicos - O Desperta da Besta (1970). Uma das obras nacionais mais viscerais que quase se perdia. Houve até solenidade para exibição da mesma junto da participação do seu gênio criador nos idos da década de 2010. Nem preciso mais argumentar.

Ritual dos Sádicos - O Despertar da Besta (1970), de José Mojica Marins.Ritual dos Sádicos - O Despertar da Besta (1970), de José Mojica Marins.

A resistência diante duma eterna luta por recursos nos mostra qual o tipo de trato destinado tanto à história quanto ao cinema por parte das instituições cabíveis. Naquela casa reside a representação no nosso legado existencial. A prova cultural da nossa sagacidade enquanto gênios criadores. Por isto devemos nos manter teimosos pela necessidade da compreensão do funcionamento desta cinemateca. Como se faz isso? Mediante a perspectiva histórica do cinema. Um olhar de assalto ao tempo. O que ele pode nos transmitir? Ora, nossa história – repeti e vou continuar repetindo ainda mais este termo ad nauseam – contada por diversas classes, vários vieses, distintas transgressões estéticas, variadas criações políticas (perseguidas ou não) dão um significado de pertencimento na eternidade. Aqueles rolos de nitrato, película, fitas e escambau, são a prova física do que somos e daquilo que podemos fazer. Somos figuras mortais e finitas, assim como os objetos que mesmo guardados em latas envelhecidas podem se liquefazer tenazmente se assim esquecidos forem. Porém estes últimos devem ser transmitidos, cuidados, copiados, recopiados e jogados de volta em todos. Do que adianta termos a capacidade de criação sem ter respeito por nossos antecessores, que pavimentaram o ardoroso caminho do nada para nos dar a oportunidade de seguir passos, mas, sim, construindo nosso próprio trajeto de transgressão? Somos a cria do passado. E dum passado rico, para o bem e para o mal. Dramaticamente nosso. Por isso devemos enaltecê-lo com muita vontade.

HISTÓRIA É CINEMA

CINEMA É HISTÓRIA

HISTÓRIA DO CINEMA

CINEMA DA HISTÓRIA

Idade da Terra (1980), de Glauber RochaIdade da Terra (1980), de Glauber Rocha

Abaixo um programa produzido para o Canal Brasil em 2001. 53 minutos resumindo a história da Cinemateca Brasileira com imagem exclusivas e entrevistas de várias figuras que por lá fizeram história. Dirigido por Kiko Mollica.

Comentários (11)

Vítor Miranda | quarta-feira, 12 de Agosto de 2020 - 23:21

alguma chance de achar os curtas citados Nitrato e Cinemateca Brasileira? foi digitalizado?

Gabilson | quinta-feira, 29 de Outubro de 2020 - 14:34

O Nitrato tem aqui: https://vimeo.com/463466112

Ted Rafael Araujo Nogueira | quarta-feira, 04 de Agosto de 2021 - 14:19

O Mario Frias teve a pachorra de afirmar que a culpa disso tudo é da administração petista. Ele, como ator fracassado da malhação e vagabundo que é, quer desviar o foco de culpabilidade que possui tanto ele como a governança federal. O contrato com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP) foi rescindido no atual governo, ou seja, o abandono completo da casa é de responsabilidade deles. Isso faz parte do desmonte do cinema nacional. Desde o começo de 2019 vemos isso. Os cortes na Ancine, as perseguições do tribunal de contas a atrasar as produções, os cancelamentos de fomento devido a vinhos ideológico-partidários... O incêndio foi mais um passo dentro dessa desgraça. A culpa é do Bolsonaro e sua trupe. A cinemateca passara por diversas intempéries, tanto de irresponsabilidades quanto naturais, mas jamais fira abandonada a não em regimes de exceção. Soa familiar?

Alexandre Koball | quinta-feira, 05 de Agosto de 2021 - 10:57

Curioso pra saber se tinha algo lá dentro que ainda não havia sido digitalizado... nem sei se saberão informar isso.

Ted Rafael Araujo Nogueira | sexta-feira, 06 de Agosto de 2021 - 10:52

Eu acredito que o material inteiro não fora digitalizado. Alguns filmes possuem suas únicas cópias salvas somente por lá, infelizmente. Outros possuem cópias digitais fileiras. Mas quem faz a transposição da película pro digital? A cinemateca tinha projetos nesse sentido. Além do grosso do material jornalístico e documental que há somente por lá.

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