Saltar para o conteúdo

Artigos

Um apelo nostálgico, saudoso e pessoal à animação - parte V

Parte V - Renascimento

Branca de Neve e os Sete Anões, Pinóquio e Bambi acrescentaram realismo à estética puramente onírica das silly simphonies. Dumbo e Você Já Foi à Bahia, conscientes da possibilidade realista, recusa-a em favor de uma experimentação surrealista. No início da era de ouro, os animadores do estúdio se encontravam livres econômica e criativamente para explorar estilos descobertos. Até, lógico, a sombria influência da televisão. Quando a velha guarda da Disney passa o bastão adiante com O Cão e a Raposa (no final dos anos 1980, a última obra-prima do estúdio), este parecia mais aquele famoso suspiro de saúde que vem logo antes da morte do que uma chance da salvação. Não é que As Peripécias do Ratinho Detetive  e Oliver e Sua Turma, que seguiram O Cão e a Raposa, fossem o que a Disney tinha feito de pior, mas que esses filmes provavam que o estúdio estava muito aquém das possibilidades para o gênero evidentes, por exemplo, no crescente fascínio que inspirava a animação japonesa.

Perceba como uma releitura mais leve de Sir Arthur Conan Doyle e Charles Dickens com animais parece estúpido ao lado de Túmulo dos Vagalumes, Akira, Gen – Pés Descalços e do trabalho inicial de Hayao Miyazaki. Para sobreviver como estúdio de animação, a Disney precisava se reinventar estética e narrativamente. De início, focou no segundo. A Pequena Sereia, o primeiro filme do chamado renascimento Disney, tem a sua protagonista mais interessante e menos linear até então. Ariel é rebelde sem causa, mimada, indisciplinada e obsessiva. Seu desejo de fugir do universo paterno conduz a trama do filme. Infelizmente, este comete dois erros: associar a fuga da princesa dos mares não apenas ao seu despertar sexual, mas necessariamente à figura desse despertar, o príncipe Eric; e sacrificar o poderosíssimo final de Hans Christian Andersen, autor do conto. A Pequena Sereia mostra que a Disney pode ter se tornado equivalente em criatividade e conhecimento técnico à animação japonesa de então, mas não chegara ao mesmo patamar de coragem.

A prova de que A Pequena Sereia era o início do renascimento, e não mais uma exceção da crise, viria antes mesmo de A Bela e a Fera e sua redentora indicação ao Oscar de Melhor Filme. O curta-metragem O Príncipe e o Plebeu, de 1990, talvez seja melhor que ambos. A história se aproxima de um realismo urbano sombrio comparável apenas a Pinóquio. Na verdade, O Príncipe e o Plebeu tem um precedente no período do luto, que é o Um Conto de Natal do Mickey, de 1983. Os dois curtas-metragens têm em comum também uma crítica e insatisfação social inédita ao estúdio e que se manifestaria com força nos temas do renascimento. Se você acha que Aladdin é muito tolo para servir de exemplo, experimente Pocahontas e, principalmente, O Corcunda de Notre-Dame.

Mas mesmo que a grande trama não foque num conflito étnico ou social (embora Aladdin seja mais um alpinista social em busca do sonho americano que um operário nas trincheiras da luta de classes, a sua pobreza, como obstáculo para o relacionamento com a princesa Jasmine, é essencial ao filme) as animações do estúdio sempre encontrariam uma maneira de denunciar o autoritarismo e a intolerância. Temos bons exemplos da temática até no pós-Renascimento. Com algumas lacunas (considerando-se a particular irregularidade deste último período), o último a peitar pela inclusão foi o ótimo Detona Ralph, de 2012.

Nesse sentido, o clímax de A Bela e a Fera, com a invasão de Gaston ao palácio, provavelmente inspirado pela pretendida metáfora com o isolamento das vítimas da Aids (já declarada pelos roteiristas do filme), é mais forte que qualquer coisa que A Pequena Sereia tenha a oferecer. Ariel, no entanto, é uma personagem ainda muito mais interessante que Bela. As duas compartilham o ímpeto de fugir do seu universo em busca de um novo (é a motivação de todos os protagonistas do renascimento). Mas, quando chega o momento do sacrifício, Ariel o faz por ela e contra o pai, Bela faz pelo pai.


Da linearidade e do altruísmo de Bela, nasce a classe do filme. A Bela e a Fera é um trabalho cinematográfico tão primoroso, possibilitado por personagens de caráter evidente, que poderia se entendido com a mesma força ainda que fosse mudo e pontuado por cartelas. Bela não precisa nos dizer o que quer (ela até canta seus desejos, mas a letra da música não é tão essencial quanto a sua melodia melancólica, como é em Part of your world, de A Pequena Sereia). Nós sabemos pela maneira como seu corpo flutua vagarosamente pela aldeia, em descompasso a todos os outros. E aí temos Fera, ou Príncipe Adam (e não é insuportável que um personagem tão bom seja reduzido a um perfeito príncipe encantado ao final?), que nunca expõe em palavras suas motivações, mas tampouco precisa, as expressões da criatura são mais que suficiente, como mesmo os monstros de F. W. Murnau. A Disney, por um breve momento, superara três décadas de animação televisiva.

É difícil dizer se Aladdin (1992) pode ser considerado uma recaída ou ele mesmo uma influência para a televisão dos anos 1990. Talvez seja um pouco dos dois. Mantendo o padrão de bons personagens, histórias e músicas (o fato de todos os filme do renascimento serem musicais é importantíssimo para a construção da identidade desses filmes e a sua permanência quase imediata como clássico na memória coletiva; acredito que a Disney foi muito bem lembrada disso com Frozen e o sucesso de Let it go), Aladdin foi, de todos os filmes da Disney, o que mais buscou uma aproximação com a comédia verbal e o que a apresentou de maneira mais inteligente. Hoje o tipo de humor construído em Aladdin é lugar comum na animação americana. Não é absolutamente original porque os seriados da Hannah Barbera e outros brincaram bastante com referências à cultura pop. Mas nem mesmo no auge da sua fase televisiva a Disney havia herdado essa característica (uma pena, era o que a animação de TV tinha de mais interessante).

O absoluto sucesso comercial desses três filmes, junto à força de produção cada vez maior da TV a cabo americana, inspiraram a influência da Disney também na televisão, com A Pequena Sereia, Aladdin, Hércules e até alguns personagens coadjuvantes de O Rei Leão sendo estendidos em seriados. Levando isso em consideração, é perfeitamente natural que o humor de Aladdin fosse do filme para a série, para outras séries e de volta para o cinema.


Da leveza de Aladdin, a Disney partiu para a sua mais escura trilogia. O Rei Leão, Pocahontas e O Corcunda de Notre-Dame herdam a melancolia de O Cão e a Raposa e A Dama e o Vagabundo, as sombras de Pinóquio e Bambi e a teatral construção psicológica e humana de Dumbo. Em O Rei Leão, a última característica não se dá por acaso. O filme é uma releitura de Hamlet, e isso foi muito mais usado como uma maneira de se olhar para ele que como estratégia de venda para um público mais erudito. Bazin diz que “Por não poder ser espacial, o infinito de que o teatro precisa só pode ser o da alma humana. [...] Como o oceano na concha, o infinito dramático do coração humano ressoa e repercute entre as paredes da esfera teatral. Por isso essa dramaturgia é, em sua essência, humana, o homem é sua causa e tema”. Nesse sentido, O Rei Leão nunca será uma proeza cinematográfica tal qual é uma proeza dramática. Seus planos são óbvios, seus cortes recorrem demais a fades (o que é estranho se considerarmos que a montagem de Aladdin é quase bollywoodiana de tão frenética). A animação tenta se aproximar de padrões da arte africana, o que nunca chega a ser nada além de interessante. A conquista técnica-visual principal de O Rei Leão é a fidelidade à anatomia daqueles animais. A Disney, como é amplamente sabido, mandou uma equipe à África para estudar os animais e a maneira como se locomovem na savana e se relacionam com ela. Assim como o corpo do ator é essencial à dramaturgia cênica, o corpo animal, em nuances realistas inéditas na animação, é essencial para o drama de O Rei Leão, para que sejamos cúmplices da culpa de Simba.

Pocahontas e O Corcunda de Notre-Dame são mais dramáticos e menos dramatúrgicos. A construção de cena de ambos é muito mais cinema. E Pocahontas é o sujeito mais estranho como animação americana das últimas décadas. O núcleo cômico do filme é mínimo. A temática é polêmica (cometendo um bocado de erros históricos e geográficos ainda não perdoados pela crítica americana). E a história é plenamente triste. Como em O Cão e a Raposa, o filme termina com a separação de forças opostas, e não com a união delas, como é usual na narrativa Disney.

O Corcunda de Notre-Dame, no entanto, é o passo mais além nas trevas dado pelo estúdio. O seu não apelo familiar o tornou o mais subestimado do renascimento. Digo isso porque é também seu ponto mais alto. O Corcunda de Notre-Dame é cinema. A construção emocional dos personagens se dá a partir de cores, focos de luz e sobreposição da trilha sonora. Além disso, a emoção de um personagem, apesar de acontecer de maneiras diferentes de um para outro, ativada inclusive a partir de pontos diferentes, nunca é só dele. A performance petulante de Esmeralda e a humilhação de Quasímodo são expressões do oprimido (que se juntam em determinado momento, um dos mais fortes e angustiados do cinema de animação). Opressão não é um tema raro na filmografia da Disney. Eu gosto particularmente de como A Dama e o Vagabundo trabalha esse conceito na relação entre dono e animal de estimação, há um tanto de Os Saltimbancos ali — ou haveria, se o filme não cedesse para a harmonia no fim. Talvez essa seja a grande diferença entre a relação opressor-oprimido em O Corcunda de Notre-Dame e no resto da obra do estúdio: quando geralmente a narrativa se converge para a aceitação, superação e consequente harmonia; O Corcunda não abre mão de um grito de guerra: revolução! As soluções colocadas pelo roteiro dos últimos filmes da Disney e Disney/Pixar evidenciam o quanto O Corcunda é realmente especial. Recentemente, apresentaram-se duas declaradas narrativas de opressão (os filmes se venderam dessa forma): a sexual e de gênero representada em Valente; a moral e de classe (e é muito importante atentar para como o filme coloca o protagonista mais pobre que seus antagonistas) em Detona Ralph. O primeiro filme termina com uma tapeçaria de valor patriarcal, rasgada em revolta pela heroína, sendo novamente costurada. No segundo, Ralph é aceito e, em retorno, também aceita o seu lugar. A resposta para o problema da opressão em O Corcunda de Notre-Dame é um levante popular e a queda do opressor diante do oprimido. “Clopin vai lhes contar a história”, anuncia-se na terceira pessoa o cigano vestido de bobo da corte. Clopin é um militante, que, para sua sobrevivência e a de seu povo, mostrou-se claramente disposto a matar (e o termo é dito) os heróis quando esses pareciam representar uma ameaça. É esse Clopin que narra o filme, conta-nos a história, e ele não fará concessões ao seu opressor.


Seguindo O Corcunda, Hércules parece ainda mais tolo que Aladdin. Representa uma virada bastante brusca para fora da escuridão e adentro de um colorido claro e iluminado, mas é um bom filme. A estratégia de releitura (da mitologia grega a partir do gospel americano) é bem interessante, uma pena que tanto seja perdido na tradução das músicas. Mégara, o interesse amoroso de Hércules, seguia os passos do novo ideal feminino dos filmes da Disney: as mulheres duronas, difíceis, não caucasianas e com um bom gingado pelos quadris. Mas, mesmo em comparação a Jasmine, Nala e Esmeralda, Mégara parece particularmente difícil de ser conquistada. Ela é, no final, pelo mesmo tipo de herói (atrapalhado e de bom coração) que conquistou Jasmine. Para além de soluções fáceis da narrativa, no entanto, Mégara ainda é uma personagem bem complexa. O sacrifício que não valeu a pena, a decepção amorosa que vira uma resistência à masculinidade (embora ela própria se orgulhe de uma certa não feminilidade).

É importante lembrar essas questões de personagem principalmente quando se considera que o renascimento representa uma mudança muito forte de postura da Disney em relação a suas protagonistas femininas. Antes dele, Aurora, ao final dele, Mulan — seguida por Lilo, Tiana e Elsa. A Disney procurou empoderar suas protagonistas. Fez isso inclusive escolhendo contos e narrativas em que a personagem feminina tem um papel muito mais ativo, como A Pequena Sereia, A Bela e a Fera, Pocahontas, O Corcunda de Notre-Dame. Mas mesmo quando o material original não favorecia as garotas, elas eram puxadas para o foco da trama. A Jasmine d’As Mil e Uma Noites era mais um objeto de desejo do herói do que uma personagem; Nala recusa a fragilidade da Ofélia de Hamlet; Mégara nunca fez parte dos doze trabalhos de Hércules.

A próxima escolha de material para adaptação do renascimento seria o passo definitivo. Mulan é um poema épico chinês sobre um guerreiro — pelo entendimento contemporâneo de gênero — trans. Preconceito de gênero — embora seja muito cretino que, na obra do estúdio, isso só seja denunciado em uma narrativa oriental — e transfobia são questões claras em Mulan. Ela deverá ser punida com a morte se descoberta em sua farsa, vários personagens repetem. O jogo com a cultura queer foi recorrente no renascimento: a metáfora com o isolamento do portador de HIV em A Bela e a Fera — e não fazem com a personagem da Fera algumas referências a Oscar Wilde? —, o Gênio on drag em Aladdin, o relacionamento entre Timão e Pumba em O Rei Leão — ainda mais ambíguo na série que protagonizam. Em Mulan, a ideia passou longe de ser subliminar. Além da protagonista e da paixão de Shang por Ping, a música original mais de uma vez brinca com a linha tênue da divisão de gêneros. No clímax do filme, os companheiros de Mulan se preparam para o ataque vestidos como gueixas enquanto ouvimos o refrão de Be a man (“seja um homem”).


O último do renascimento, Tarzan, é assim considerado por continuar no gênero musical (embora a trilha sonora se desenvolva de maneira diferente) e manter o padrão cinematográfico da animação, que entraria em séria crise no novo milênio, por mais que o texto na animação da nova era ganhasse maturidade, principalmente no humor, agora, como os grandes estúdios têm orgulho em colocar, “para todas as idades”.

Talvez a tentativa de restabelecer o sonho de Walt Disney de refazer Fantasia de tempos em tempos, com Fantasia 2000, sugerisse uma continuidade do renascimento. Mas o seu evidente fracasso (as esquetes não chegavam aos pés das do filme de 1940), seguindo a frieza com que Tarzan fora recebido, não era um bom presságio. A sequência inicial de Dinossauro — quase uma homenagem e pedido de desculpas ao Fantasia original — encheu os olhos para a animação digital; o resto do filme mostra o quanto a pretensão realista dessa nova maneira de conduzir o cinema de animação é vazia. Bons e humildes filmes, reminiscências de projetos antigos, seriam ainda feitos, como os maravilhosos A Nova Onda do Imperador e Lilo e Stitch. Outros pretendem um grande voo e não conseguem sair do chão, como Atlantis: O Reino Perdido.

Planeta do Tesouro e Irmão Urso já lutavam em vão para competir com os filmes computadorizados da Dreamworks e da Disney/Pixar, aclamados por público e crítica. É interessante lembrar que os dois primeiros vencedores do Oscar de Melhor Animação foram Shrek e Miyazaki. Independente da Pixar, a Disney só recebeu o prêmio neste ano, com Frozen, que, suspeito, só venceu Vidas ao Vento pela polêmica fútil que cercou o filme.

Nesta série de artigos que encerro aqui, recorri apenas à filmografia da Disney por dois motivos: o meu afeto pela animação tradicional do estúdio até os anos 1990, que em muito é responsável por minha cinefilia, e pela manifestação da crise exclusivamente no mercado do cinema de animação americano. França e Japão continuam fazendo belíssimos filmes a partir da animação tradicional e não dão qualquer sinal de cansaço — embora eu lamente com profundidade a aposentadoria de Miyazaki, um mestre da animação e do cinema como poucos.

Leia os artigos anteriores:

Parte I: Os Pioneiros
Parte II: O Hiato
Parte III: O Ouro
Parte IV: O Luto

Comentários (6)

Heitor Romero | segunda-feira, 08 de Dezembro de 2014 - 12:43

Minha fase preferida da Disney. A Bela e a Fera, A Pequena Sereia, Mulan, O Estranho Mundo de Jack, O Rei Leão, Aladdin, Pocahontas, Fantasia 2000,Tarzan, O Corcunda de Notre Dame, Lilo e Stich, tudo filmão.

Já A Nova Onda do Imperador e Planeta do Tesouro são fracos demais.

Ricardo Amaral Guedes | segunda-feira, 08 de Dezembro de 2014 - 13:16

Excelente artigo mesmo. Apesar de lamentar o encerramento, fico contente por saber que não sou o único que não enxerga em Frozen a obra-prima que tantos pregam.

Quanto ao Rei Leão, embora a polêmica seja desnecessária, acho que valia uma menção ao trabalho do Tezuka - Kimba, a meu ver, é dotado de maior densidade e melancolia. A amargura de Pinóquio, Bambi e Dumbo está ali presente de um jeito bem mais pungente que no clássico noventista da Disney >>> http://imgur.com/a/e0dUA

Luiz F. Vila Nova | segunda-feira, 08 de Dezembro de 2014 - 13:51

Belo artigo de encerramento. Gostei bastante das partes sobre 'A Bela e a Fera', "O Corcunda de Notre Dame' e "Mulan', pois trouxeram informações que eu desconhecia, enriquecendo ainda mais as obras em questão. Quanto a parte sobre 'O Rei Leão' confesso que fiquei desapontado, dado a importância e o peso da animação para o estúdio (acredito que fique atrás apenas de 'Branca de Neve e os Sete Anões' neste quesito), aqui reduzida a papel de coadjuvante.

Abdias Terceiro | terça-feira, 13 de Janeiro de 2015 - 06:24

Puta Texto!!
Referencial histórico bem objetivo.
Relembrar essas animações através dessa ótica investigativa
Nos dá uma compreensão muito maior da magnitude de tais obras. Uma Pena mesmo
Que se encerre aqui esses artigos. Sobre Frozen... Gosto mais de Tangled

Faça login para comentar.