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Coutinho Repórter e Ser Tão Cinzento

Sessão dupla da Mostra de Cinema de Ouro Preto, Coutinho Repórter e Ser Tão Cinzento recordam memórias importantes e emblemáticas da produção audiovisual brasileira durante a ditadura militar: a participação do documentarista Eduardo Coutinho no Globo Repórter, em que trabalhou durante 9 anos – até abandonar o programa em 1984 para realizar um dos mais fundamentais documentários da história do cinema brasileiro, Cabra Marcado Para Morrer -, e a impressionante história de Olney São Paulo, cineasta que com seu curta-metragem Manhã Cinzenta comprou briga com os militares no início dos anos 70, sendo preso e torturado – falecendo anos mais tarde devido a um câncer desenvolvido por ferimentos adquiridos nos pulmões com os espancamentos sofridos durante a prisão, o que lhe garantiria com justiça a alcunha de mártir.

Coutinho Repórter aposta no que há de mais franco na relação com seu personagem. São pouco mais de 20 minutos de conversa cara-a-cara com Coutinho, selecionadas de um encontro de aproximadamente 3 horas entre ele e o diretor Rená Tardin, e intercaladas com imagens pesquisadas em arquivos de colecionadores – a emissora foi procurada, conta o diretor, mas não autorizou o direito de uso dos originais - e que mostram Coutinho em atividade durante os programas da Rede Globo, nos quais conseguiu a proeza de trabalhar importantes temáticas sociais sem intervenção dos censores.

É um filme que emula com precisão o modus operandi do cineasta: do plano de abertura, com Coutinho segurando seu inabandonável cigarro, à galhofa final, quando em um tom bem-humorado, de conversa fiada de boteco, revela ter desviado materiais da emissora para a realização de Cabra Marcado Para Morrer, há uma simplicidade na interlocução que respeita a postura de Coutinho como documentarista enquanto exige dele sua participação do lado de lá, na condição de entrevistado, deixando-o livre para dialogar diretamente com o espectador. Ouvir o cineasta relatar suas façanhas para driblar as restrições dos padrões jornalísticos da emissora e a censura do período é uma experiência agradável por si só, e compreender isto é o grande mérito do curta de Tardin.

Se o tom da sessão de Coutinho Repórter é de leveza, em Ser Tão Cinzento, por outro lado, o clima é de tensão. Afinal, o filme trabalha sob uma densa e arrebatadora carga histórica. Se a relação de Coutinho com a ditadura é de conquista, da vitória sobre a imposição totalitária característica do período, não podemos dizer o mesmo de Olney, o cineasta mais maltratado pela ditadura militar e vitimado por suas investidas contra a liberdade de expressão – não por nada, sua coragem e bravura trariam como consequência a própria morte do cineasta, que, como já mencionado, preservou diversas sequelas das agressões sofridas durante a prisão. 

Vencedor da última edição do É Tudo Verdade, o filme de Henrique Dantas resgata imagens da única cópia do filme não destruída pelos militares, escondida à época na Cinemateca do Museu da Arte Moderna, do Rio de Janeiro, para elaborar uma encenação poética através da projeção das cenas em paredes, grades de ferro e outros cenários que remetem à atmosfera opressora da ditadura. A forma não-linear do filme não esclarece diretamente todos os pontos, mas estimula o espectador a pesquisar mais sobre a fundamental e pouco propagada história do diretor – para quem se interessar, é possível inclusive encontrar o filme na íntegra no Youtube, dividido em três partes (aqui, aqui e aqui).

Manhã Cinzenta é um daqueles filmes que costumou-se chamar de malditos. Um petardo contra a opressão e o totalitarismo, para o qual Olney utilizou imagens reais de uma manifestação estudantil nas ruas do Rio de Janeiro, organizada pouco tempo antes do decreto oficial o AI5, como princípio de uma trama de ficção que narra um país imaginário, em que estudantes tomam o poder e passam a controlar o Estado. As críticas à ditadura são diretas e incisivas, através de diálogos e de imagens emblemáticas como homens engatinhando encoleirados pelas ruas. O filme tornou-se alvo de perseguição dos militares depois de ser encontrado sob posse de membros do grupo terrorista MR-8, que sequestraram um avião e, dizem, teriam passado o filme para seus reféns durante o voo. Quisera o tempo, enfim, que voltássemos a ter acesso a esta obra-prima essencial: hoje Manhã Cinzenta volta a ser exibido em cineclubes pelo país, e ganha também um documentário que registra, além de sua importância histórica, o temido poder reflexivo e libertário da arte.

Visto na 7a Mostra de Cinema de Ouro Preto

Comentários (1)

Adriano Augusto dos Santos | domingo, 01 de Julho de 2012 - 10:19

Adoro o Coutinho.
Ele é o único documentarista que respeito como cineasta.Muito hábil e inteligente.

Herzog também é grande,mas faz ficção todo o tempo,então.

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