Saltar para o conteúdo

Artigos

Gomorra - O Livro

Os que leram minhas considerações sobre o filme Gomorra puderam perceber uma total reprovação às escolhas do diretor Matteo Garrone e dos demais roteiristas que adaptaram a obra de Roberto Saviano, autor do livro homônimo. No longa-metragem, diversos aspectos mostraram-se precipitados, como é o caso da desastrosa montagem e do ritmo excessivamente lento com que as tramas são desenvolvidas.

Na contramão do longa-metragem, o livro Gomorra possui ritmo narrativo acertado e envolvente. Dividido em duas partes, a história não segue uma linha cronológica e tampouco intercala suas tramas como no filme. Saviano expõe o cotidiano estarrecedor da Camorra, a violenta máfia de Nápoles, por meio de várias histórias contadas uma após a outra, sempre focado nas ações de determinados clãs que integram o Sistema – modo como os integrantes da Camorra a chamam - e escancara o submundo do crime organizado com a propriedade de quem ficou dois anos infiltrado nos clãs que agem em cidades do sul da Itália, região em que o autor nasceu.

A comparação entre obra cinematográfica e o livro-reportagem – apesar de concordar que são artes distintas e com estilos particulares – leva a conclusão de que a adaptação para o cinema foi precipitada também na escolha das tramas extraídas do livro e que, quando boas passagens da obra são identificadas no longa, percebe-se que a sua abordagem tirou muito do impacto causado pela narrativa firme, clara e chocante de Saviano, que conta com riqueza de detalhes o poder econômico e militar dos clãs da Camorra.

Para se ter uma noção, os clãs têm métodos próprios de ação, mas filiados à entidade maior (a Camorra) devem agir de acordo com os princípios estabelecidos por ela. A Cosa Nostra, por exemplo, sempre foi a favor da glamourização de suas atividades, valorizando as exposições na mídia, enquanto a máfia napolitana preferia agir na surdina, aproveitando o descaso de autoridades e da imprensa para fazer seu império crescer de maneira meteórica.

Detalhando cada nome de grupos mafiosos, seus integrantes, locais e métodos de ação, Gomorra mostra, além da hierarquização e organização do crime organizado na venda de drogas, a infiltração da máfia em atividades legais, apoiada pela conivência de empresários que, sabidamente, contratam ou terceirizam serviços com agentes da Camorra com a intenção de reduzir custos e aumentar os lucros. E competir com os clãs é missão impossível, pois ligando a ilegalidade à legalidade, e se infiltrando nela, conseguem produzir a custos bem inferiores aos da concorrência e, consequentemente, comercializam a preços bem abaixo dos praticados pelo mercado.

Assim, a obra-prima de Roberto Saviano, um livro difícil, mas de envolvimento absoluto, conta como os clãs se infiltram na indústria de alta costura italiana, como confeccionam as roupas de grandes grifes usadas no mundo inteiro, com a complacência das marcas que contratam seus serviços. A indústria Camorrista conseguiu, desse modo, ser dona de grandes lojas de roupas valorizadas em todo o mundo, incluindo Rio de Janeiro e São Paulo, além de fornecer vestidos para as estrelas de Hollywood na noite do Oscar, sem que os astros saibam a verdadeira procedência, de trabalho sujo e desumano, das roupas que vestem.

E Roberto Saviano continua sua denúncia contando como a máfia conseguiu dominar em diversos locais a indústria de construção civil, alimentícia e de coleta de lixo, e como ela se aproveita dessas atividades para vender drogas e traficar armas, tudo a preços sempre baixos e com ligações íntimas com marcas famosas de diversos ramos de atuação, como empresas de leite italianas que lavavam dinheiro, por exemplo, investindo em clubes de futebol. Uma das características mais intrigantes é o fato de os clãs camorristas não aceitarem a comercialização de produtos de baixa qualidade, pregando pela excelência de seus produtos, sempre produzidos de forma a assegurar sua máxima qualidade, para que, dessa maneira, conquistem um público fiel, que não terá a saúde prejudicada e nem comprará produtos defeituosos, para que assim continuem consumindo o que é vendido pela Camorra por longos e duráveis anos.

Quanto mais se avança na leitura de Gomorra, mas forte fica o cheiro de podridão e a sensação de impotência predomina. Não há prosperidade sem ilegalidade, parece sugerir o livro. E, sem pessimismo, parece também ser difícil ver algum ramo que não esteja afundado em atividades ilegais e/ou criminosas, além de parecer impossível não alimentar o crime, mesmo que de forma inconsciente. O que se compra nos shoppings, nos supermercados, nas revendas de automóveis, absolutamente tudo pode ter sido produzido, direta ou indiretamente, por grupos criminosos ou passado, em muitos casos, pelas mãos da própria Camorra.

O jornal O Estado de S. Paulo mostrou, em matéria publicada no início desse ano, a ligação da Camorra com o Primeiro Comando da Capital (PCC), que se iniciou com o contato de um preso italiano - pertencente a um clã camorrista – com dois presos brasileiros em uma prisão de São Paulo. A mesma reportagem traçou um paralelo entre as organizações, mostrando suas semelhanças estruturais e na forma como agem para tornar legal o dinheiro proveniente de atividades ilícitas. Em São Paulo, de acordo com a matéria, o grupo estendeu seus negócios para postos de gasolina. 

Como o próprio Saviano conta, a máfia napolitana mantém relações estreitas com empresários do leste europeu, com grupos da América do Sul e da Ásia. Enfim, o autor escancara como o mundo, de um modo geral, e não só as províncias italianas abordas em seu livro, tornam-se grandes Gomorras, cidade bíblica atingida pelo fogo divino como forma de punir os habitantes pecadores e perversos do local.

A título de curiosidade, Gomorra (o livro) ainda conta as histórias, sempre com a mesma riqueza de detalhes, da criação da arma Ak-47, da participação feminina nos negócios dos clãs, além de expor as estrutura das “famílias” – dividas em níveis nas quais os integrantes só conhecem seus superiores imediatos. Há ainda, uma completa retratação do código de conduta dos clãs, do conceito de assassinato permitido, e dos motivos que, vez ou outra, levam a embates armados entre grupos da Camorra ou entre membros dissidentes de um mesmo clã. Vale tudo na terra da Camorra, contanto que essa liberdade esteja de acordo com as regras do Sistema. 

A estrutura da máfia é gigante, complexa e assustadora. O livro de Roberto Saviano é pesado, estarrecedor e indispensável.

 

Livro: Gomorra
Autor: Roberto Saviano
Tradução: Elaine Niccolai
Editora: Bertand Brasil
Ano: 2008

Comentários (0)

Faça login para comentar.