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O terror social de George A. Romero – Parte 1

Quando em 1968 George A. Romero lançou seu filme A Noite dos Mortos Vivos (Night of The Living Dead, 1968), ele marcou o cinema de horror de uma forma sem precedentes. Inspirado pelo terror mais humano e cotidiano de Psicose (Psyscho, 1960) e Os Pássaros (The Birds, 1963) de Hitchcock, onde elementos familiares voltavam-se contra nós ao invés dos castelos mal assombrados e presenças etéreas e pelo filme de vampiros Mortos que Matam (The Last Man on Earth, 1962) - estrelado pelo icônico Vincent Price -, que retratava uma civilização destruída após uma devastadora praga promovida por um vírus, Romero descobriu naquele momento sua vocação: a de comentarista social que utilizava o gore como sua principal arma metafórica.

Romero, ao criar mortos que voltavam das tumbas para devorar os vivos, foi responsável por fazer o público esquecer por algum tempo dos outros zumbis que o cinema havia retratado até então, tanto os zumbis espectrais do vodu que assombravam os brancos que ousavam visitar o Haiti em filmes como Zumbi Branco (The White Zombie, 1932) e A Morta-Viva (I Walked with a Zombie, 1943) quanto os zumbis atômicos, que denunciavam o medo de um mundo imerso na Guerra Fria, através de experimentos à la Frankenstein promovidos por cientistas loucos, como visto no clássico filme B The Astro Zombies. Agora os zumbis não eram mais monstros alienígenas à nossa concepção de mundo: o terror estava dentro de nossas casas. Os mortos eram nós. E estavam com fome.

O Horror Canibal

Polêmico como poucos filmes foram na sua época, inclusive taxado por críticos da época como uma “orgia de sadismo”, A Noite dos Mortos-Vivos logo revelou ter seu impacto por algo além dos efeitos especiais grotescos que pioneiros dos filmes apelativos como H.G. Lewis fizeram no início da década de sessenta com o lamentável Banquete de Sangue (Blood Feast, 1963); essa obra-prima de 1968 tinha um impacto muito dramático ao tocar em um ponto ainda sensível da sociedade branca, anglo-saxã e protestante: atacar a família americana e a casa interiorana.

Como em algumas das piores visões bíblicas, a epidemia zumbi joga amigos e familiares uns contra os outros; o irmão de Barbra volta dos mortos para fazer a irmã juntar-se aos falecidos; a filha do casal Cooper ataca e devora a mãe. Como em Os Pássaros, os zumbis não respeitam nenhuma noção de civilização; eles atacam para aliviar sua eterna fome por carne humana fresca. O covarde Harry Cooper logo entra em conflito com o negro Ben, que logo mostra-se o mais voluntarioso e líder natural de um grupo.

O conflito de negros contra brancos, de reações covardes contra ações enérgicas é uma das principais “pisadas no calo” promovidas por Romero. Os vivos não tem chance contra o problema zumbi – contornável vista a inteligência inferior e lentidão dos mortos que só representam perigo real em grande número – unicamente pelo motivo que não podem cooperar, chegar a um consenso, e sim bater de frente um contra o outro. O orgulho e as ações tomadas no “calor do instinto” jamais serão substitutos para o debate racional. Homo homini lupus – o maior inimigo do homem é o próprio homem. Em um cenário como a casa em que os personagens se isolam, qualquer autoridade está longe demais para poder tomar alguma providência a respeito – e a maioria das pessoas simplesmente não está disposta ou preparada para cooperar e trabalhar em equipe ou enfrentar situações de calamidade de forma racional. Uma civilização desamparada, sem uma figura de autoridade definida ou eleita, logo começa a liberar seus instintos mais baixos.

Em plena época da Guerra do Vietnã, dos últimos anos do Código Hays, em vias de começar o governo Nixon, em pleno sonho drogado de paz dos festivais hippies, do alcance do Comunismo em lugares perigosamente perto dos Estados Unidos – Cuba - e de movimentos de guerrilha violentos como os Panteras Negras, A Noite dos Mortos-Vivos causou grande impacto ao sintetizar dentro de uma casa vários tipos sociais incompatíveis  que retratavam uma América de mentalidade fragmentada e sem rumo, perdida na guerra do “Nós contra Eles”, a mentalidade conservadora e com traços de autoritarismo dos mais velhos contra a rebeldia hedonista e utópica dos jovens. Os zumbis, então, nada mais eram que a deformação grotesca da América do Norte, em uma época onde o medo e o nervosismo eram tão palpáveis no ar que o país ameaçava a devorar a si mesmo de forma precipitada. 

Quem é o verdadeiro irracional?

Em O Exército do Extermínio (The Crazies, 1973), Romero já apostava em um filme bem mais explicitamente político que A Noite dos Mortos-Vivos. A história, uma variante das inúmeras histórias de vírus epidêmicos que transformavam pessoas em monstros irracionais – como os predadores sexuais de Calafrios (Shivers, 1975), de David Cronenberg – que reinavam na época, acabava por não fugir muito dos temas que Romero tratou tanto antes quanto depois, como a crítica veemente ao governo e as observações ácidas à organização da estrutura social. O filme, portanto, acabou por pavimentar o caminho entre A Noite... e Despertar dos Mortos (Dawn of The Dead, 1978).

Um vírus que transforma as pessoas em maníacos homicidas que espancam, matam e incendeiam tudo à vista obriga dois bombeiros e uma enfermeira, namorada de um deles, a fugirem não apenas dos infectados, mas principalmente das autoridades, que recebeu a ordem de atirar e executar qualquer um que estivesse à vista. Esse tipo de governo, que trabalha mais com a violência, a intimidação e a burocracia do que realmente com inteligência e planejamento, é satirizado ao longo do filme por Romero; a incompetência de um governo tão repressor e violento deixa passar duas possibilidades de cura (negando e ameaçando fisicamente um cientista que precisa de um laboratório maior para testar a hipótese de uma cura e colocando para quarentena um homem aparentemente imune que poderia ser a solução para o problema) e ao final do filme, nada se resolve e o Coronel Peckem, encarregado no início do filme de conter o vírus, é logo transferido para outra cidade infectada. Muito provavelmente, apenas para falhar miseravelmente de novo, já que trabalhará sempre com os músculos e nunca com o intelecto.

O título é ambíguo – quem são os loucos? Os infectados? Ou o próprio governo, que age de forma tão brutal quanto os contaminados, que ao menos tem a desculpa do vírus? Mas a crítica de Romero é bem direta: quando surgir uma crise de grandes proporções, o suficiente para fazer a população geral perder a noção de “ordem social”, as autoridades dificilmente oferecerão ajuda – não apenas poderão atrapalhar, mas talvez sejam os grandes inimigos. Figuras autoritárias e violentas, governamentais ou não, cercadas por vassalos violentos são uma constante nos horrores políticos de Romero; e é aqui que entrava uma das questões que seriam mais aprofundadas nos filmes posteriores: o tom progressista - porém praticamente niilista – apresentado nos filmes de horror mais urbanos e cotidianos.
 
“Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos andarão sobre a terra”

Logo no início de Despertar dos Mortos, a jornalista Fran acorda de um sonho ruim para uma realidade muito mais terrível; o amanhecer morto-vivo traz consigo o final da civilização. E a humanidade, pouco a pouco, vai junto, jogando contra si mesma. Ela testemunha que a estação de televisão onde trabalha divulga abrigos já inutilizados, apenas para conseguir manter a audiência. Não muito longe dali, os policiais da SWAT Peter e Roger, juntos com um batalhão, invadem um prédio de negros e latinos que recusa a ceder seus parentes contaminados pelo vírus zumbi.

Desde o início, nesse grande filme-cartoon de paleta cromática bizarra e efeitos grotescos, Romero já pisa no calo de dois elementos da sociedade capitalista: a mídia que então perdia o “idealismo” de informar em troca do sucesso a qualquer custo e uma polícia que não ajuda a comunidade, apenas é mais um elemento autodestrutivo. Um policial branco no meio da ação surta e começa a atirar não nos zumbis, mas sim nos negros e latinos vivos – certamente, algo difícil de acontecer nos subúrbios americanos, lar de uma elite branca supostamente mais civilizada em suas adoráveis casas (que Romero já havia feito o favor de aterrorizá-las em A Noite...). Romero não parece acreditar que uma mídia corrupta e fraudulenta e uma polícia elitista e racista sejam características de um país realmente democrático com oportunidades iguais.

Apesar do conselho dos cientistas de não hesitarem em atirar pra matar, a ameaça zumbi nunca é encarada com sua dimensão exata. A população não está pronta para exterminar aqueles que até há pouco tempo eram seus entes queridos; por sua vez, a maioria dos caipiras, mercenários, policiais e soldados não leva a sério suficiente, encarando o apocalipse epidêmico como uma espécie de temporada de caça humana, zumbi ou não. Tiram fotos, dançam na frente, provocam os zumbis; a sátira de Romero é certamente cruel ao mostrar que estamos numa sociedade tão concentrada em si mesma que até o colapso de uma ordem social não é levado a sério. Os motoqueiros mercenários que saqueiam o shopping no último ato do filme iniciam um cômico e bizarro festim de sangue encenado com terrível humor negro.

Em sua longa duração (pelo menos para um filme B), a história dos sobreviventes que se refugiam em um shopping dá vazão a um mundo onde a ordem social cessa de existir – mas o consumismo não. Os zumbis andando no shopping atrás de carne humana reproduzem o comportamento em vida. O materialismo hedonista desesperado e descerebrado que dominava uma sociedade que havia matado o sonho hippie de paz e igualdade e ficado cética após o escândalo do Watergate acaba evoluindo, portanto, para o consumismo canibal.

É a entropia da política, dos debates, das idéias; cessam de existir grande parte das instituições. Nem o espiritual pode fornecer respostas, apenas, como o resto do mundo, supor. Resta aos protagonistas sobreviventes isolarem-se no “templo de consumo”, o shopping center. É lá onde, consumindo como loucos, os humanos ficam anestesiados por um estilo de vida que se mostra não ter significado sem uma sociedade para reconhecê-lo. Tanto eles quanto os zumbis abandonaram qualquer tipo de moderação. Apenas a necessidade do corpo, da barriga cheia, que passam a importar.

Essa cultura do excesso, de retratar que, sem o entrave de ter que se adequar a uma sociedade (que afinal de contas não existe mais), a humanidade fica tão selvagem e pouco civilizada quanto qualquer animal selvagem – ou talvez pior. Em um mundo anestesiado pelo exagero, onde a recomendação de “atirem na cabeça”, seja ela morta ou viva, ninguém mais quer ter tempo para considerar ou dialogar.

Quando a proteção do templo de consumo logo vira claustrofobia e isolamento de estarem presos em um lugar onde se tem de tudo, mas esse tudo também perde o significado, Romero provoca a queda da “Roma” dos personagens assim que o shopping é invadido. Resta aos poucos que saíram vivos – por usarem a cabeça na qual agora é moda atirar – fugirem. A fuga constante é a única solução contemplada por Romero.

Afinal, Despertar dos Mortos é uma obra praticamente niilista. Depreciados os valores tradicionais e destruído os ícones do velho do mundo, nada aparece para substituir o seu lugar. Pelo contrário: Fran, grávida de uma criança já órfã, some no horizonte junto com Peter em um helicóptero. Talvez a versão de Romero para a sagrada família, uma visão distorcida, até – uma família que não é família - que não veio para mudar e trazer uma nova ordem ou uma resposta. Talvez eles sejam o único resquício de civilização em um mundo selvagem, talvez eles sejam a oportunidade da humanidade começar do zero novamente aonde família, cultura, status e consumo não importarão: Romero não responde, criando um final ambíguo – e olhando para o mundo dos consumidores canibais, quase dá culpa de cogitar qualquer esperança.

O fim do homem

Em Dia dos Mortos (Day of The Dead, 1985), a civilização é apenas uma lembrança: a humanidade agora habita as minas subterrâneas tentando se adaptar à nova situação enquanto os monstros canibais reinam absolutos. Vemos uma América do Norte destruída e desolada – uma superpotência que caiu vítima do próprio peso e ignorância.

Na mina subterrânea transformada em abrigo militar, habitam os cientistas – que, chefiados pelo excêntrico doutor Logan, tentam entender o comportamento dos zumbis para saber se seria possível, de alguma forma, conviver com nossos novos predadores naturais – e os militares, chefiados por Rhodes, um homem abertamente totalitário e que não aceita questionamento de autoridade. O embate entre o pensamento progressista dos cientistas – que buscam coexistir com os zumbis de alguma forma – com o fanatismo agressivo dos militares, que ainda seguem a lógica “atirem na cabeça” vista em Despertar dos Mortos logo toma conseqüências trágicas.

Porém, o toque tanto de ironia quanto de inovação foi a criação de Bub, o zumbi: assim como seus correlatos que iam para o shopping center por causa de um fragmento de memória em vida, o zumbi protagonista da obra ainda é capaz de lembrar atividades como folhear um livro, apreciar música e disparar uma arma. E ainda por cima demonstra sentimento de gratidão para com o doutor Logan.

Porém, os vivos mostram uma tendência contrária; se agora os zumbis aprendem e discernem, os sobreviventes logo acabam retornando a um instinto de matança primal. Doutor Logan, em sua busca por domesticar zumbis, começa a alimentá-los com carne humana de militares mortos. Quando descobre isso, o já brutal Capitão Rhodes (que defendia o extermínio imediato de todos os zumbis que eram usados como cobaias por Logan) começa a atentar tanto contra os mortos quanto contra os vivos. Romero denuncia: estamos em um mundo onde a mais “civilizada” das criaturas, sob determinada situação, despreza a razão e prefere usar os punhos. Não à toa o homem agora tem um predador natural: existe uma criatura mais capaz de adaptar-se do que ele próprio.

Romero também procura inverter o escopo dos primeiros filmes de zumbi: pela figura do caribenho John, empreiteiro e único no local que sabe pilotar um helicóptero, ouviremos monólogos que põe abaixo a idéia de que o maior país do mundo não era um país civilizado, mas sim uma máquina de consumir. Terceiro herói negro dos filmes de Romero (sucessor de Ben, de A Noite... e Peter de Despertar...), é também o mais ideológico: suas críticas ao capitalismo e à civilização contemporânea nos fazem imaginar se não seria o desprezado Terceiro Mundo o verdadeiro refúgio e berço de uma civilização decente. Segundo o mesmo, toda a cultura humana é sangrenta e brutal e deveria ser esquecida; os filhos de um novo mundo começariam do zero, assim como nós.

É o que acontece no final; novamente, os sobreviventes mais racionais fogem da cinzenta selva de asfalto tomada pelos canibais, fogem da América, do Tio Sam, do autoritarismo do Capitão Rhodes – que, no final, era uma certa espécie de “dono de terras e escravos” que existiu por tanto tempo na história recente da humanidade. O patriarca branco acaba sendo morto e devorado pelos “escravos” ao final. Os sobreviventes fugitivos acabam desembarcando em uma praia tropical, onde pescam e começam a usar o calendário de novo. Assim como o vírus zumbi, o capitalismo para Romero é uma doença pela qual devemos evitar o contágio. Pouco importa agora a profissão, cor ou credo; tudo que se pode fazer é tentar buscar um novo significante e novos símbolos. Cumpriu-se o desejo de John – a civilização não existe mais. A humanidade agora tem outra chance – e só depende dela agora.

Nessa primeira parte da sua série zumbi, Romero delineou tantos clichês que, hoje em dia, tornam-se muito difíceis de fugir. Mas, antes de mais nada, com suas metáforas escancaradas, representou como poucos a gravidade dos anseios e medos que dominavam o mundo na sua época. Ele põe lenha na fogueira ao mostrar como a brutalidade e o fanatismo são estúpidos e como o debate faz-se necessário em um mundo cada vez maior, que cada vez consome mais, mas cada vez menos tolerante. A casa, a família, o estado, o sistema de consumo, as autoridades e a comunidade científica são postas à prova e questionadas com seus filmes apocalípticos. O terror profundamente humano e próximo de Romero abala todas as estruturas sociais e não deixa pedra sobre pedra.

E é o que ele continuará fazendo com a vindoura década de 2000. Não percam a parte final do artigo em breve, que trata sobre os três últimos filmes de zumbi de Romero, a saber: Terra dos Mortos, Diário dos Mortos e A Ilha dos Mortos.

Comentários (2)

Francisco Bandeira | quinta-feira, 27 de Fevereiro de 2014 - 02:30

Porra Brum, tu é o cara mesmo! 😁

Ted Rafael Araujo Nogueira | quarta-feira, 30 de Outubro de 2019 - 18:19

Macho escrevi o meu texto e nem sabia desse. Ficou massa bicho. O Torres que me avisou. Romero é um cara foda e dá pra discutir o legado dele de todo jeito. Um monstro. Tem a parte 2? Valeu.

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