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O terror social de George A. Romero – Parte 2

O novo século e o novo milênio foram uma transformação cultural e tanto. Milhares de carreiras encontraram seu fim ou foram postas em xeque. E com Romero não foi diferente. Depois de Dia dos Mortos (Day of The Living Dead, 1985), seus projetos como diretor rarearam – entre o fim de década e o início de outra, dá para se contar seus projetos no dedo de uma só mão.

Mas na década de 2000, os zumbis para os quais tinha dado uma forma definitiva, finalmente haviam deixado de ser um fenômeno cult-underground – graças ao sucesso dos jogos da série Resident Evil (que desembocariam na franquia cinematográfica de Paul W.S. Anderson e Milla Jovovich), dos quadrinhos The Walking Dead, de Robert Kirkman e de apostas cinematográficas como o remake Madrugada dos Mortos (Dawn of The Dead, 2004) e os ingleses Extermínio (28 Days Later, 2002) e a comédia satírica Todo Mundo Quase Morto (Shaun of The Dead, 2004), mais a criação das zombie walks pelo mundo – para tornarem-se os novos monstros no momento, capazes de competir de igual para igual com os sempre populares vampiros e lobisomens.

Nada foi mais natural, então, do que o “pai” de toda uma geração também merecer um lugar ao sol – começando uma nova série zumbi. Mas não que ele já não tivesse tentado isso antes...

A outra noite

Anos antes do “boom” zumbi e antes mesmo até do primeiro jogo Resident Evil, Romero escrevera o roteiro de um remake homônimo da sua obra-prima, A Noite dos Mortos-Vivos (Night of The Living Dead, 1990), escolhendo seu fiel maquiador e técnico de efeitos especiais Tom Savini como diretor da obra. Obviamente, Savini e Romero não apenas refilmaram plano a plano o que havia dado certo em 1968 como caça-níquel puro. Os tempos eram outros e novos pontos mereciam revisão.

Essa nova obra contrariava a tendência cada vez mais monstruosa e escatológica dos zumbis da década de 80. Os zumbis de Savini, doentios, brancos e esquálidos e carregando um vírus mortal pareciam corresponder a um panorama social da época, o medo da AIDS que aterrorizava o mundo. Mas, como Romero sempre faz questão de lembrar em suas histórias, o pior não é o vírus epidêmico em si, mas sim a reação “quente”, espontânea e irracional das pessoas.

A variação na estrutura desloca Ben do posto de personagem principal; agora, a palavra “ação” pertence à nova Barbara de Patricia Tallman. Saía uma mulher submissa, perdida entre a paralisia do medo e a histeria do desespero e entrava uma mulher racional, sem medo de se voluntariar nem de falar alto, de igual para igual, com os homens. Apegado aos menos favorecidos, Romero não trabalhou em suas histórias apenas com negros tão ou mais capazes do que brancos, mas também com mulheres tão ou mais capazes do que homens. A Barbara da obra de Savini é herdeira direta da jornalista Fran de Despertar... e a cientista Sarah Bowman, de Dia...; Romero pareceu captar as transformações que, ao longo do tempo, a humanidade teve de enfrentar. Fran é uma jornalista que aprendeu a pilotar helicópteros e a atirar. Dra. Sarah é uma das únicas pessoas em sua base que tenta buscar uma solução científica para o seu caso. E com a nova Barbara não é diferente: toda a sua luta se baseia em tentar manter a cabeça no lugar enquanto todo o resto se torna cada vez mais brutal e insano.

Podem dizer que o viés do remake é, de início, explicitamente feminista. Talvez, por um lado, seja. Mas seu ponto principal é, acima de tudo, a crítica ao pensamento “macho alfa”. Pisando no calo de sentimentos patriarcais, o filme de Savini afronta a idéia a todo o momento de que agir com músculos e autoridade ao invés de cérebro e diálogo seja uma boa idéia. Enquanto os homens decidem entre si quem na casa manda no que, Barbara tenta descobrir um modo de sair desse pesadelo viva de alguma forma. Se para Harry o ideal é ocupar o porão e para Ben reforçar as entradas, a protagonista só pensa em se mandar dele ao perceber que a casa americana, no final das contas, não é segura para ninguém e o que o deslocamento (ou seja, adaptação) constante é a única solução.

O terceiro ato sintetiza todo o pensamento do filme: tanto o homem branco quanto o negro começam a atirar entre si enquanto todos à sua volta matam ou morrem. Pura competição infantil, que ignorou o uso do cérebro e da sensibilidade o tempo todo. Tanto a covardia quanto a postura enérgica revelaram ser duas faces de uma espécie de autoritarismo velado, que no filme original determinava os homens como cabeças de equipe. Esses novos Harry e Ben não são nada mais que continuação direta do autoritarismo brutal e moralista do Capitão Rhodes, de Dia...: assume o comando, reprime as mulheres, segrega minorias, delega funções e ordens, não aceita questionamento, determina o que é condenável ou apropriado. No final, apenas o racionalismo de sobrevivente de Bárbara aparenta ser uma resposta.

No final, ela observa caipiras exterminando zumbis de forma bárbara – ameaça que ela sempre percebeu ser contornável (ela literalmente esquiva dos zumbis quando sai de lá, afinal de contas). Concluir que os zumbis não são nada mais que o nosso típico comportamento reproduzido ao máximo deságua em um dos finais mais tristes de Romero: tomar a consciência que não se é uma ilha – e que todos que a cercam estão prontos para entrar em guerra, testar força, provar qual é o mais duro e “macho” – ao invés de procurar de uma vez a solução para a situação. A nova Bárbara - que faz o que tem que fazer não porque gosta, mas porque está determinada a viver, mas nem por isso perdendo a “sensibilidade” desprezada na cultura excessivamente masculina - surgiu como uma das personagens femininas mais humanas e complexas do cinema de horror.

O Capitalismo Zumbi

Em Terra dos Mortos (Land of The Dead, 2005), a sociedade como conhecíamos acabou – ou não. Os Estados Unidos, assim como o resto do mundo, tornaram-se uma terra de ninguém, tomada por hordas de zumbis; e os vivos criaram oásis para se protegerem – grandes construções circundadas por cercas elétricas. Contando a história da comunidade Fiddler’s Green, Romero iniciava sua nova aventura zumbi na cadeira da direção com um novo panorama de personagens, bem diverso e explícito, determinado a representar uma espécie de microcosmo capitalista sintetizado.

Fiddler’s Green é chefiada por Kaufman e seus puxa-sacos, homens brancos, limpos e ricos que moram em uma área isolada e mais bem-protegida do que o resto; graças a um exército de saqueadores, que armados até os dentes e dirigindo potentes e ameaçadores veículos modificados e blindados, circulam pelos destroços dos Estados Unidos na busca por suprimentos. Eles permanecem comendo bem e, é claro, deixando o resto do povo nas mãos da miséria, fome, vício e diversão barata. A mais nova dessas brincadeiras é ter construído uma jaula onde humanos indesejáveis (como um dos personagens principais, a rebelde prostituta Slack) e zumbis são postos em combate ao melhor estilo romano.

Através dos olhos do protagonista, o saqueador Riley, que só quer saber de fazer seu trabalho e de cair fora dali na primeira oportunidade que tiver, somos apresentados a mais uma visão de mundo fatalista do diretor; um mundo onde o câncer humano, o capitalismo, recusa-se a morrer, mesmo depois da estrutura social já ter ruído. Ele volta, cada vez mais amoral e grotesco. Fiddler’s Green, por si só, é um pesadelo que nas suas cores podres e atmosfera agonizante parece perturbar o diretor: o medo de um mundo onde qualquer situação política deixe de existir para que no seu lugar entre uma estrutura social baseada única e exclusivamente não na busca pela igualdade, mas sim na concentração indiscriminada de renda, na manipulação das camadas pobres para que a mesma viva de forma animalesca, em uma estratificação social intransponível.

Para Romero, então, a única saída possível de situação tão monstruosa e desumana é a revolução. Primeiro, por causa de Cholo, um saqueador que, através dos seus serviços, espera ter a oportunidade de subir na vida e mudar-se para a parte nobre de Fiddler’s Green. Segundo saqueador mais respeitado do local, atrás apenas de Riley, seus serviços prestados a Kaufman, incluindo assassinato, acabam não sendo reconhecidos, afinal de contas, devido a sua ascendência latina, os donos de terras brancos que dominam o local não acham que determinadas pessoas possam prosperar dentro do parquinho de diversões que projetaram.

Roubando o carro blindado, ele ameaça destruir o local e deixar os zumbis tomarem conta, acabando por revelar-se o nêmesis de Kaufman: se como bom líder de estado, o mesmo é enfático ao negar-se negociar com Cholo, o saqueador é um radical que não aprova esse sistema social desigual baseado unicamente no lucro.

Mas essa não será a única dor de cabeça de Kaufman, homem que isolou e alienou seu pequeno país do resto do mundo: há também os zumbis, sempre implacáveis e com as suas surpresas. Dos simples autômatos loucos por carne que os saqueadores deixavam em transe lançando fogos de artifício no céu, surge entre eles Big Daddy, que como Bub, em Dia..., ainda tem um resquício da consciência humana e resolve agir contra os humanos que os mantém fora de seus domínios.

O segundo herói zumbi de Romero (e também seu quarto personagem central negro) lidera os zumbis para dentro da isolada Fiddler’s Green, ensinando seus companheiros mortos-vivos a usarem armas e se organizarem estrategicamente. Os mortos famintos contra os acomodados e anestesiados humanos – o conflito de Romero, mesmo em 2005 e produzido por uma major (a Universal) ainda possui raízes solidamente revolucionárias advindas das décadas de 60 e 70. Ele parece sintetizar todas as vozes de minorias sob uma mesma bandeira: a dos menos favorecidos, de “camponeses” e “vagabundos” que não suportavam mais a tirania dos senhores feudais, supostos senhores da terra.

O ataque final que põe abaixo Fiddler’s Green destrói tal sistema grotesco e deixa tudo um estado de caos generalizado e, justamente por isso, esperançoso. Os zumbis e os humanos começam a seguir cada qual o seu caminho. Romero, como sempre, é ambíguo – será que o que nos impede de coexistirmos em harmonia é justamente a passividade alienante de um sistema de aglutinamento de capital e recursos aonde apenas um pequeno grupo é favorecido? Como acontecia em Despertar..., tudo o que nos resta é contemplar um final em suspenso. O futuro, sem amarras, sem protótipos, superiores ou regras, é uma atraente e assustadora página em branco.

De todos os seus filmes sobre os mortos-vivos, Terra dos Mortos é talvez o mais explicitamente político: o que mais esbraveja e faz metáforas bem explícitas sobre a situação que os EUA viviam na época; de um lado, é mostrada uma nação ilhada em si mesma, usando vendas para tentar esquecer a calamidade zumbi, com seus líderes totalitários e elitistas, vassalos do poder em dúvida que, ao passar do filme, vão adquirindo consciência tanto para o desprendimento e a fuga (no caso de Riley) quanto para a fúria vingativa (caso de Cholo), e, finalmente, os zumbis, que passaram dos consumidores canibais dos anos 70 retratados em Despertar... como analogias grotescas ao consumismo compulsivo, para o elemento de ação e transformação.

Para Romero, doenças sociais como a de Despertar... e de Terra dos Mortos devem ser combatidas: a grande população deve, urgentemente, fazer a transição do consumo truculento, canibal e demente para a revolta necessária – e Romero, com seu grafismo sempre pesado, não advoga a favor da violência, mas vê ela como peça-chave e elemento indissolúvel na história humana e na transformação da ordem das coisas. Nunca houve revolução pacífica – e a revolução zumbi não é diferente. Terra dos Mortos é o grito dos malditos, feito por um artista que nunca acreditou no papo de “paz e amor” para mudar o mundo, e sim na tomada de consciência e ação. Riley, Slack, Cholo, Big Daddy – cada um, à sua maneira, revolta-se contra Kaufman, o senhor das terras. O mundo não se resume a Fiddler’s Green e seus homens brancos, reacionários, sádicos e ricos. Também é terra das mulheres, negros, latinos e libertários; e se o branco faz questão de pegar o que deveria ser de todos e chamar de seu, com certeza alguém cedo ou tarde reclamará e irá de encontro contra a opressão. Ou como bem resume Cholo, irá “fazer uma Jihad no rabo dele”.

“Shoot Me”

Diário dos Mortos (Diary of The Dead, 2007) aprofunda-se em um tema que Despertar... apenas havia rascunhado: a influência das mídias em nossas vidas. Indo além agora de criticar o sensacionalismo e a exposição de idéias radicais, Romero promove, nessa era digital, uma pequena discussão sobre quais são os verdadeiros meios de comunicação – e quais são os instrumentos de manipulação.

Não à toa, Romero usou uma linguagem bastante em voga à época, a câmera em primeira pessoa estilo “falso documentário”, no auge da graça então devido a filmes como [REC] (idem, 2007), Atividade Paranormal (Paranormal Activity, 2007) e Cloverfield - Monstro (Cloverfield, 2008). Jovens estudantes de cinema filmam um trabalho de conclusão de curso – um filme de terror sobre uma múmia. Porém, logo se veem obrigados a parar quando inevitavelmente o mundo vem abaixo com a praga zumbi. Resta a eles apenas procurar por refúgio. Mas um deles, Jason Creed, resolve não parar de filmar, pretendendo fazer do apocalipse morto-vivo um novo documentário, batizado de “A Morte da Morte”.

Apesar de despertar a revolta em todos ao seu redor, inclusive sua namorada Debra, com sua câmera eternamente ligada, Jason segue filmando a qualquer custo – muitas vezes, inclusive, sendo questionado quando prefere filmar ao invés de ajudar amigos ameaçados por algum zumbi. Impossível não lembrar nesse momento de fotógrafos que documentavam a desgraça de forma distante – como Kevin Carter fotografando a foto de uma criança desnutrida no Sudão se arrastando e um abutre esperando sua morte ou a de Eddie Adams de um homem sendo executado por um chefe de polícia em Saigon. As câmeras capturam tudo, escrevem as desgraças em luz.

E só mais tarde entenderemos porque Jason faz isso: para dar a sua versão dos fatos. Com o advento da internet, milhões de pessoas ao redor do mundo puderam agora dar a sua versão dos fatos – e é o que acontece. O registro obsessivo de Jason combate as informações da grande mídia que diz que a situação não é tão grave quanto parece e que em breve a calamidade será controlada. Um mundo onde a informação é tão importante e cobiçada quanto o dinheiro com certeza tem seus grupos majoritários de interesse – e seus guerrilheiros ideológicos underground. Não à toa, quando oficiais da Guarda Nacional roubam os suprimentos do grupo que viaja de RV para um refúgio, recusa ser filmado. Ele tem a consciência, afinal de contas, que imagens não mentem.

Diário dos Mortos é mais uma empreitada de Romero na desconstrução do american way of life. Em seus filmes, famílias, consumidores, oficiais militares e donos de terra foram intensamente revistos e descortinados; chega a hora do mundo da comunicação. Dos meios irresponsáveis que tentam controlar e alienar as pessoas ao invés de informá-la. Os zumbis, ao contrário dos revolucionários de Dia... e Terra... e os consumidores fanáticos de Despertar... ficam aqui no campo da metáfora sobre a irresponsabilidade dos governantes e seus vassalos: quando os mortos voltarem a caminhar sobre a terra, você não poderá confiar em nada do que seja oficial ou corporativo. Porque todos eles sempre trabalhão segundo os seus interesses e propósitos, e jamais em prol da comunidade.

É percebendo isso que Jason deixa esse mundo – ao ser mordido, pede para a namorada atirar nele, sem nunca deixar de filmar (criando a ambígua fala em inglês “shoot me”, “me filme” ou “atire em mim”) deixando para a posterioridade o registro de um insensato mundo que Debra tem que conviver agora. Pela internet, milhares de blogs e canais de streaming ao redor do mundo dão notícias verdadeiras com uma praga cada vez mais incontrolável – e mostrando como as pessoas estão perdendo a cabeça. Lembrando o final do remake de Noite..., a garota – presa dentro de um quarto blindado - recebe o vídeo de caipiras que deixaram pessoas penduradas em árvores para morrer de inanição para que, quando as mesmas virassem zumbis, tivessem uma desculpa para praticar tiro ao alvo com elas.

Diferente de Barbara, que ficava pasma ao ver aquilo lembrando que os zumbis somos nós e nós somos eles, afinal de contas, a pergunta que surge na cabeça de Debra é mais aterradora ainda: se uma civilização tão selvagem, corrupta e desumana merece ser salva. Diferente dos finais ambíguos em suspenso dos últimos três filmes de zumbi que havia dirigido, Diário... se assume como, talvez, a obra mais niilista de George.

Da terra nascem os zumbis

Com uma trama livremente inspirada em Da Terra Nascem os Homens (The Big Country, 1958), de William Wyler, A Ilha dos Mortos (Survival of the Dead, 2009), conta novamente, como acontecia em Terrra..., sobre a história de um microcosmo – no caso, uma ilha dominada por duas famílias rivais com dois patriarcas constantemente em guerra, Patrick O’ Flynn e Seamus Muldoon. Já adversários há muito tempo, o problema se agravou quando os mortos da ilha começaram a levantar-se – os O’ Flynn querem exterminar todos os zumbis da ilha, enquanto os Muldoon recusam-se, mantendo seus parentes e amigos atingidos pelo vírus amarrados ou presos até que uma cura para a epidemia seja encontrada.

Na trama original, dois rancheiros que se odiavam colocavam toda uma pequena cidade do Oeste em perigo entrando em guerra supostamente por um lugar que não sofria com as secas e fornecia água durante todo o ano – e só mais tarde entenderíamos a verdadeira natureza do conflito: que ambos os homens se odiavam. Saindo do faroeste situado no início do século passado e entrando no terror desse início de novo milênio, a história não muda: enxergando a história através dos protagonistas, os renegados da Guarda Nacional que haviam roubado os suprimentos dos estudantes em Diário..., encontraremos, como acontecia no remake de Savini, uma nova crítica ao patriarcalismo machista burro e brutal que domina a ilha – análoga à nossa sociedade – há gerações sem perspectivas de mudanças. A mentalidade conservadora para Romero não parece ter lugar em uma sociedade contemporânea justa.

E é o que acontece, invariavelmente: os dois patriarcas com seu antigo ódio gravado em pedra são mais perigosos que qualquer zumbi para a sobrevivência daquela ilha. Quase como uma parábola contracultural, Romero parece afirmar que é mais fácil um zumbi evoluir e desenvolver inteligência do que um homem aprender com os próprios erros, questionar as tradições e conseguir progredir. Os homens fazem uso de tecnologia moderna, utilizam armas mais atuais, mas ainda combatem da mesma forma como se ainda fosse na época do faroeste de Wyler. A economia progride, a tecnologia idem, mas as idéias não. Romero recria um mundo onde tudo que é supérfluo avançou, mas o desenvolvimento intelectual ficou pelo meio do caminho.

O final, com uma morta-viva que aprende a devorar outra coisa além de seres humanos enquanto os dois fazendeiros em sua ignorância reacionária mataram um ao outro e continuam duelando indefinidamente agora que voltaram dos mortos, com pistolas sem munição, parece corroborar o pensamento do Romero. Afinal, a zumbi era uma mulher jovem, em contraponto aos dois homens velhos. A narração final de um dos sobreviventes da Guarda Nacional explicita a idéia: longe de ser a guerra de “nós contra monstros”, a praga zumbi é uma guerra de “nós contra nós”.

A regra da seleção natural – adapte-se, mude, questiona ou simplesmente morra - é mais válida do que nunca na segunda parte da trilogia zumbi de Romero. As bandeiras e ideologias devem ser esquecidas, o ser humano deve vir em primeiro lugar. O radicalismo que se recusa a evoluir será, inevitavelmente, nosso apocalipse. A nova Barbara, Riley, Debra e o Sargento “Nicotine” Crockett, mesmo com suas diferenças contextuais e de personalidade, são no final da conta quatro questionadores que buscam enxergar além da estrutura, recusando-se a apelar para os instintos baixos e desumanos tão fáceis de se dar ouvidos.

Mais de quatro décadas de zumbis

Com o término da sua segunda trilogia zumbi, um amadurecido Romero veio exibir novas ideias a respeito desses tempos mutantes onde sempre há o que se reconsiderar, repensar e criticar. Percebendo melhor a mudança dos tempos que a maioria dos seus contemporâneos de estilo, seu horror zumbi do terceiro milênio foi recauchutado: ideias que haviam sido esboçadas e sugeridas anteriormente agora eram aprofundadas – fazendo de seus seis filmes (ou oito, se considerarmos Exército... e o remake de Noite... como parte de uma mesma obra continuada – afinal, os valores contemplados e criticados assimilam-se) uma poderosa série de comentários sociais que cobrem praticamente toda a segunda metade do século vinte até o fim da primeira década do novo século.

Partindo de um conceito filosófico, vindo de uma crendice do vodu, onde os seres perdem a consciência e qualquer senso de civilização ou humanidade seja para servir a um senhor (no mito haitiano) ou saciar uma fome eterna na primeira parte da trilogia, onde os zumbis reproduziam de maneira grotesca e às vezes quase cartunesca, até, sobre indivíduos que perdiam o senso de unidade e se transformavam em uma massa antropofágica que reproduzia de forma automática seus comportamentos em vida para virarem agentes de transformação em sua segunda parte, onde a ameaça que representavam extrai do homem seu lado mais obscuro e selvagem que, em seu desespero por sobreviver, cairá em barbárie tão grande ou pior que a dos mortos-vivos: elevando a aglutinação de bens e recursos e matando as ideias e o debate, manipulando informações e reprimindo focos de resistência, levando a guerras por questões intangíveis e imensuráveis, como território, ideologia, bandeiras, raça...

A inclusão de zumbis na equação, como uma minoria subjugada, controlada, caçada e morta sem hesitação que na verdade é uma grande maioria de revoltosos esfomeados que cedo ou tarde irão insurgir contra os poucos “donos do mundo”, acaba por fazer de Romero um dos poucos cineastas que ainda levanta a bandeira da desconstrução, da revolta, da destruição de um império de objetividade – e que, provavelmente, irá carregar até o final dos seus dias. Com seus setenta e dois anos, era esperado que ele pisasse no freio, mas, felizmente, muitos queimaram a língua – a fúria do seu cinema já deixou um legado imenso e, pelo andar da carruagem, acompanhando a atual produção zumbi da indústria cultural, está longe de acabar. E mesmo que acabe, é só deixar quieto que volta do além quando nós menos esperarmos...

Comentários (1)

Dalmo Alexsander | segunda-feira, 29 de Julho de 2013 - 21:07

Matéria sensacional!
Uma grande homenagem a um dos diretores mais impares que existe no cinema... parabens!

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