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Radiografia: Os filmes favoritos de George Romero

Falecido em 16 de Julho deste ano, Romero foi um cineasta de importância imensurável para o que se entende por cinema fantástico moderno, dando visões contemporâneas a elementos batidos, criando clássicos assustadores e utilizando de suas narrativas como mola para comentar temas urbanos, sociais e políticos, criando um horror social que andou sempre à margem do mainstream mesmo quando suas principais criações, os zumbis, viraram uma febre midiática no final dos anos 90 e início dos 2000. 

Mas quais seriam os filmes que teriam inspirado a mente do homem por trás do incêndio revolucionário e contracultural na década de 60? Abaixo comentam-se as escolhas reveladas pelo lendário e saudoso cineasta em entrevista à Sight e Sound em 2002, que podem ser conferidas em links ao final da matéria.


Os Irmãos Karamazov (Richard Brooks, 1958)

Responsável por clássicos como Sementes da Violência (1955) e Gata em Teto de Zinco Quente (1958), Brooks também assinou essa criticada adaptação de Fiodor Dostoiévski para o clássico Os Irmãos Karamazov. O próprio Romero em seus comentários para a Sight & Sound sabe da polêmica da escolha, reconhecendo a típica breguice Hollywoodiana. Elogia porém a presença de Yul Brinner, a sensualidade da atriz Maria Schell e a comoção despertada pela música. Sacrificando o debate filosófico de Dostoiévski, a história conflituosa dos irmãos que disputam pela herança do pai narrada em forma de melodrama por Brooks tem o que a fascina Romero: a sugestão de temáticas disfarçadas em um filme “inferior”. Por trás da música emocionante, danças sensuais e violência dramática, também está a história de três representantes da sociedade russa (um boêmio, um intelectual e um religioso) em busca da herança (que representa além de fortuna também o protagonismo e poder) e sendo destruído por causa disso. Um debate para o russo, uma fábula moral para o americano, a cafonice favorita do pai dos mortos.


Casablanca (Michael Curtiz, 1942)

“Aqueles aviões maravilhosos, chapéus incríveis e bares fantásticos. Tudo embalado em um dos maiores filmes de todos os tempos”. Apesar da obra independente e revolucionária, Romero é o que pode ser chamado de um classicista incurável; a força de seus filmes de zumbi é escalada sobretudo na composição de fábulas - histórias que narram uma coisa mas abordam outras. Romero narrou histórias de zumbi que batiam duramente em temas como consumismo, militarismo e preconceito. Não é estranho, portanto, sua adoração a um filme que é um triângulo amoroso que não é a típica história sentimental, já que em uma Marrocos na Segunda Guerra Mundial amargurado dono de bar Rick vê-se obrigado a tomar partido quando ressurge do passado sua ex-parceira Ilsa, agora casada com o líder da resistência Victor. Cruzando temas pessoais e políticos e falando sobre amor e dever, o filme tem talvez o grande roteiro já escrito em Hollywood. A força reside muito nos pequenos momentos, como o choro emocionado dos franceses expatriados quando derrotam o cancioneiro militar nazista com La Marseillaise; o resgate de humanidade que se vê nos momentos limítrofes. As obras de Romero estão cheias dos indivíduos comuns que redescobrem suas obrigações para com o outro; é o caso dos protagonistas Ben (de A Noite dos Mortos Vivos) e Fran (Despertar dos Mortos) que pertencem a grupos minoritários e discriminados (um negro e uma mulher) mas lutam no final do dia por sua comunidade.


Dr. Fantástico (Stanley Kubrick, 1964)

Romero afirma que “queria poder escolher todos de Kubrick” e que para outros ele talvez tenha feito melhores trabalhos, mas nenhum o diverte tanto quanto Dr. Fantástico. “Lolita compete de perto, mas tendo crescido nos dias de ‘abaixe-se e se esconda’, de um jeito perverso eu amo a Bomba”, fazendo alusão ao subtítulo original (“ou como eu aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba”). A comédia de humor negro de Kubrick que abordava a perigosa corrida bélica comandada por governantes vaidosos chefiando soldados psicóticos e manipulados pelo ex-nazista Dr. Strangelove é praticamente um pré-Romero; basta pensar em seu filme que mais investe na sátira, Despertar dos Mortos. No filme de 1978, zumbis vão ao shopping center seguindo o instinto que os guiava antes de morrer e tornam-se a última palavra em consumo. Sobra avacalho na obra de Romero, com zumbis levando tortada na cara pelas mãos de motoqueiros invasores ou escorregando em uma pista de patinação enquanto os amplificadores do shopping emitem uma cômica música lounge. O tipo de contraposição (a repulsa do horror, o riso da comédia) que fascinou nomes como Edgar Wright tem seus antecedentes em Kubrick - não dá para esquecer de Dr. Strangelove tentando conter que seu braço faça uma saudação nazista ou o militar cowboy cavalgando empolgado uma bomba nuclear que explode ao som da sentimental “We’ll Meet Again” de Vera Lynn. O tipo de imagem bizarra e inusitada que virou tradição nos filmes de Romero (o zumbi Bob escutando música em Dia dos Mortos, o lado podre da humanidade recanalizado na selvageria de um macaco em Instinto Fatal) que traz sua carga de mensagem sociopolítica sem nunca perder o mérito de catarse cinematográfica.


Matar ou Morrer (Fred Zinneman, 1952)

Chamado por John Wayne de “antiamericano”, Matar ou Morrer é um western sombrio que cutucou dolorosamente a ferida de um Estados Unidos dividido pela sanha macarthista ao apresentar Will Kane, xerife que vê-se obrigado a defender sua cidade sozinho pois toda a população se acovardou. O protagonista interpretado por Gary Cooper é obrigado a depender apenas da própria coragem, habilidade e inteligência em um filme que é ditado quase que em ritmo de thriller, com o relógio marcando o tempo real decorrido no filme afunilando de maneira cada vez mais irrespirável a história do herói com medo de morrer. Não é o caso de Ben na versão de 1968 e de Barbra no remake de 1990 de A Noite dos Mortos-Vivos? São desprezados (negro em uma área branca na década de sessenta, mulher tentando ter voz entre homens), são racionais (propõem soluções práticas e não deixam levar-se pelo emocional) e frequentemente encontram-se solitários por conta de seu desajuste. O estilo da câmera de Romero, cujas composições centradas em profundidade de campo (para evidenciar as hordas de zumbis ou como seus heróis são sempre minoria) e em elevada dramaticidade de misé-en-scene (close-ups, plano detalhe, trilha incidental) certamente tem sua dívida com o western atípico de Zinneman, onde a cidade esvaziada, com suas construções fotografadas em branco-giz contrastando com a figura sombria do xerife que caminha a passos incertos em sua terra natal, ressaltaram a atmosfera turbulenta daqueles anos como poucos filmes do “alto escalão” conseguiram sintetizar. 


As Minas do Rei Salomão (Compton Bennett e Andrew Marton, 1950)

“Eu cresci nos cinemas do Bronx e tirando filmes proibidos como Sementes da Violência e O Pequeno Rincão de Deus os maiores lampejos de ‘comportamento adulto’ nos quais poderíamos pôr os olhos vieram dos grandes espetáculos Hollywoodianos que nossos pais nos levavam para ver porque acreditavam que seria entretenimento seguro”, declara Romero. É o caso da superprodução estrelando Deborah Kerr, adaptação mais conhecida do clássico literário homônimo de H. Rider Haggard estrelando o clássico herói Allan Quatermain. Inspiração óbvia de Steven Spielberg e George Lucas na criação de Indiana Jones, a produção também deve ter provocado um grande impacto emocional no pai do horror moderno ao mostrar em sua mistura de dramaticidade e sensacionalismo em elementos como a diversidade do grupo (mulheres, nativos), os perigos da selva (em inserts documentais da fauna africana), as incursões em cavernas cinematograficamente sombrias, os impressionantes estouros de manadas que os protagonistas testemunham… Os filmes de zumbi de Romero são em essência grandes aventuras cinematográficas: um deslocamento do lugar original e uma subversão da vida cotidiana que só o cinema pode oferecer de forma tão imersiva e ao mesmo tempo controlada. E o misto de fantasia com realismo desses filmes, cenários alternando com enxertos reais através do poder da montagem, é o que deu origem ao produtivo Romero dos anos 70 em filmes como O Exército do Extermínio, O Despertar dos Mortos e Martin, com seus cortes inventivos nos aproximando e afastando da realidade simultaneamente. 


Intriga Internacional (Alfred Hitchcock, 1959)

As escolhas de Romero são sobretudo emocionais, “dez filmes para ver quando eu estiver no inferno”, brinca o mesmo, mas fazem todo sentido quando dissecamos certos aspectos de seus filmes. No caso do clássico de Hitchcock com Cary Grant, o pai dos mortos declara que “tendo que encarar a danação eterna, eu posso querer me divertir um pouco. Talvez Cary naquela plantação de milho faça meu inferno mais suportável”. E bem, as histórias de Hitchcock, tão elaboradas em aspectos psicológicos (culpa cristã, objetos amaldiçoados)  às vezes davam vazão mesmo à pura testemunha de tensão. Descrita por Hitchcock como a cena antítese de “ser perseguido por um assassino num beco sem saída à noite”, a perseguição ao protagonista em uma fazenda por um avião é o absurdo delicioso adorado por muitos fãs de Romero. Os policiais limpando o shopping com caminhões e artimanhas tomam bons dez minutos de puro divertimento e suspense em Despertar dos Mortos; a explosão em A Noite dos Mortos-Vivos parte de planejamento, discussão e preparação psicológica. Em ambos os casos, misturam o frenesi da ação com consequências irreversíveis do drama. A fuga constante do homem inocente por forças que o mesmo desconhece comandada por Hitchcock é uma tônica do suspense, que sintetiza as muitas questões que são pano de fundo através de desesperados gerenciamentos de conflito. Os Pássaros pode ser o filme que antecipou o clima geral de apocalipse, mas talvez Intriga Internacional foi aquele que incutiu no subconsciente do diretor a importância que tem a condução enervante de um conflito a ser resolvido.


Depois do Vendaval (John Ford, 1952)

De novo, eis o classicismo incurável de Romero, que surgiu reinventando um tipo particular de cinema mas carregando elementos apaixonados de seus anos de formação. “Fui criado como católico, então este talvez tenha um impacto extra em mim. Mesmo agora em meu estado mais cínico toda vez que assisto me apaixono cada vez mais”. A história não é do homem sendo deslocado do seu elemento, como tratam os filmes de Romero, mas do homem voltando para casa e sendo mudado por tal retorno (afetado por paixões, intrigas, rivais). Mas Sean, o irlandês que volta depois de muito tempo nos Estados Unidos para o seu país de origem, é o tipo de personagem que é o fascínio de John Ford e coincidentemente o de Romero: o de personagem-síntese de um conceito, o personagem ideal de uma fábula. Como Straub aponta, John Ford era “mais Brecht que Brecht” no sentido de tornar suas histórias um grande festival alegórico: a misé-en-scene é representada como forma de valorizar elementos morais de Ford. Seus filmes são altamente ideológicos ao exaltar a constituição da sociedade americana - e os filmes de Romero são exatamente a antítese; os zumbis no shopping como a doença consumista da civilização em Despertar dos Mortos, o abrigo de sobreviventes destruído por causa da intolerância e absolutismo militarista, Martin como o vampiro jovem sedutor porém aberrante, incapaz de encontrar seu lugar social como a representação da hedonista juventude dos anos 70. O protagonista Sean Thorton é o nativo tornado forasteiro, que não pertence mais à própria terra, e os protagonistas de Romero são os desvios da norma que tem de constantemente lutar por sua sobrevivência. 


Repulsa ao Sexo (Roman Polanski, 1965)

“Estamos agora no que é pensado como a minha zona - o filme de horror. Muitos não colocariam Repulsa ao Sexo nessa categoria, mas eu sim. Tubarão é um filme de terror? E O Silêncio dos Inocentes? Sim. E eles elevaram o gênero. Mas estamos falando de Roman aqui! Se vocês querem algo assustador, recebam do homem assustador. Vá assistir Repulsa ao Sexo”. Junto a Hitchcock com seus Psicose e Os Pássaros, Polanski foi um dos cineastas mainstream responsáveis por trazer o horror até nossa porta, urbanizando-o com suas obras-primas Repulsa ao Sexo e O Bebê de Rosemary, filmes sessentistas que compõem dois terços da sua Trilogia do Apartamento, onde elementos da vida urbana, agora a tônica dos grandes países após o êxodo rural e a ascensão da chamada classe média, viraram a representação do indivíduo típico do século 20. Romero revirou as casas de subúrbio, shopping centers e abrigos militares porque diretores como Polanski subverteram um lugar tão idílico como o “lar doce lar” ao narrar a história da mulher com medo de homens e que sofre de delírios constantes, onde elementos comuns são subvertidos em fantasmagóricos - e não à toa não uma, mas duas de suas protagonistas femininas sofrem de pesadelos vagamente relacionados à trama, como atestam as sequências de abertura de Despertar dos Mortos e Dia dos Mortos. Não mais o deslocamento, mas o que conhecemos como seguro pode muito bem ser assustador e a fuga acaba parecendo talvez a única fuga racional e sã: eis o eco do niilismo Polanskiano na política Romeriana. 


A Marca da Maldade (Orson Welles, 1958)

O noir de Orson Welles influenciou em muito Romero; aliás, toda a obra do gênio revolucionário diretor de Cidadão Kane. Em entrevista à Sight & Sound, ele diz ter sido mais influenciado pelos filmes de Orson do que pelo clássico de terror atômico O Monstro do Ártico, um dos primeiros “horrores científicos” que seriam pano de fundo de algumas obras suas como O Exército do Extermínio, Instinto Fatal e Noite dos Mortos-Vivos. Em matéria de linguagem, Romero diz que desenvolveu um estilo de edição frenético e cheio de cortes que não só ajudavam a ansiedade mas que também oferecia mais possibilidades de costurar uma cena do que cenas com menos planos filmados. É a máxima de Orson de “filmar como um exibicionista e montar como um censor”, onde talvez o que foi originalmente roteirizado e filmado não se pareça nada com o que foi montado, com a mágica acontecendo mesmo nos recortes e colagens de película. “Ter essas opções me ajudou muito a desenvolver esse estilo desenfreado”, disse o cineasta. A história de crime de A Marca da Maldade é completamente torta, cheia de reviravoltas, com personagens inspirando comoção e medo, onde nenhuma autoridade ou máxima parece ser inquestionável, e onde tudo é tocado em ritmo de pesadelo, com elaboradas composições que nunca deixam barato: além de um dos momentos mais assustadores em Despertar dos Mortos é quando a câmera assume o ponto de vista de um sobrevivente em um elevador para ser atacada pelos zumbis; e todo o diálogo de “Quando não houver mais espaço no inferno os mortos caminharão sobre a terra” abusa de tomadas de planos detalhes dos zumbis tentando entrar no shopping e os protagonistas em um andar superior, filmados quase que exclusivamente de baixo (contra-plongée), testemunhando a invasão do real pelo sobrenatural. Elementos dificilmente racionalizados enquanto se assiste, mas que reforçam a atmosfera geral pretendida, muito como Welles ambicionava, raramente filmando (e montando) sem propósito, sempre gerando filmes mais “tortos” que o tradicional.


Contos de Hoffman (Michael Powell e Emeric Pressburger, 1951)

Para Romero, esse é o último mas não menos importante; “é o meu filme favorito; o filme que me fez querer fazer filmes”. A produção dos The Archers, companhia comandada pelos autores-diretores-roteiristas Powell e Pressburger nos deu alguns dos filmes mais sofisticados entre as décadas de 40 e 60; o filme inspirado na ópera de Offenbach, que por sua vez adaptava três histórias curtas do renomado autor fantástico E.T.A. Hoffman, que também era o protagonista da história. Para a dupla, Contos de Hoffman soa como um irmão fantástico de Os Sapatinhos Vermelhos, aparentando na opulência de suas tomadas de câmera elementos de cena mas com o adendo do mundo assombrado imaginado por Hoffman, onde os amores do protagonista frequentemente são sabotados por razões que não são desse mundo mas que insistem em invadir. Adorado não só por Romero mas também pelo crítico francês André Bazin e o célebre cineasta Martin Scorsese, o filme é uma aparente inspiração para todos que não apenas abordam temas mas também narram uma história com efeitos específicos, apelando a certas reações emocionais universais. Romero e Scorsese aparentam-se em certos níveis quando extraem o fantástico do real, quando a situação cotidiana (amor no caso do protagonista de Offenbach e Powell/Pressburger; vida urbana no caso de Romero e Scorsese) traz certas cores, sons e ângulos que não pertencem à realidade que julgamos típica. A adoração de Romero só mostra como a sofisticada dupla deixou um legado inestimável para o cinema.  

Fontes: BFI e Sight & Sound

Comentários (1)

Vinicius Garcia | quinta-feira, 03 de Agosto de 2017 - 22:22

essa série de artigos foi uma ideia genial.

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