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A burocracia calculada do Oscar

Uma pequena parábola: um jovem e um velho iam à cidade montados em um burro. O velho no lombo do animal, o garoto guiando. Alguém passa e diz: "velho explorador, coitada da criança". O velho então desce, o garoto sobe e o próximo passante diz: "garoto folgado, o senhor tão idoso, jovens têm de andar". Os dois dão de ombros e então o senhor sobe. A próxima opinião de transeunte que recebem é: "pobre animal, tendo que transportar o peso de duas pessoas". Sem saber o que fazer, os dois descem; e a próxima pessoa que os vê ri e diz: "dois imbecis! Tem um burro em perfeitas condições e andam a pé!".

E o que isso tem a ver com o Oscar? Justamente isso: o preço que se paga por agradar a todos.

Esse ano do Oscar pareceu transitório. Inclusive por isso aconteceu de eles irem com a opção segura e escolherem o filme convencional e formatado.

Porque se você pegar pra analisar, de novo o melhor filme não foi o mais premiado (da mesma forma que Mad Max foi mais premiado que Spotlight); e o maior número de prêmios recebido foi 4. Quatro prêmios pra uma competição que tinha RomaA FavoritaInfiltrado na KlanNasce Uma Estrela e Pantera Negra, quatro players muito mais fortes ou em público ou em crítica, ou nos dois. Se era pra escolher o popular, eles tinham Estrela e Pantera - mas escolheram Green Book para ficar no meio do caminho. Lembraram de Crash, o que não deixa de ser verdade - muitos não lembram mas foi um Oscar extremamente polarizado: ganhou a zebra para não gerar polarização entre os fãs dos fortes.

Mas ainda assim foram vitórias fracas. O Oscar fez questão com que cada um dos candidatos principais fosse contemplado em algum coisa. Reparem na distribuição, não há favoritos. Mesmo Bohemian Rhapsody, maior vencedor da noite, foi o maior vencedor com aperto, com dois filmes com três prêmios em seus calcanhares. 

Uma evidência disso é Olívia Colman. Haviam prêmios de critica e de sindicato que diziam respeito a atuação, e Glenn Close era a favorita com Lady Gaga logo atrás. Mas de forma calculada, o prêmio de melhor atriz foi para A Favorita, pois azar de Glenn Close estar na sétima indicação e não estrelar um dos principais prêmios: A Esposa não fazia parte do rateio, simples assim.

Essa é a burocracia calculada do Oscar. Não esqueçamos, eles querem agradar não o público, mas os públicos: os críticos e cinéfilos e a sede por inovação, o público mais velho e novas versões do mesmo filme, os jovens e suas franquias de super-heróis com músculos, porém também um mínimo de cérebro, os ativistas políticos e seus filmes-agenda, além dos profissionalmente envolvidos: o antigo mercado de distribuição em salas e o novo mercado de distribuição streaming, além dos atores, fotógrafos, figurinistas, montadores, curta-metragistas.

Todos gritam: "me representem!", "voltem aos velhos tempos!", "inovem!", e o resultado de inúmeras sobre a mesma premiação? Todos os lados do muro: quer carta marcada? Tivemos Mahershala Ali ganhando Ator Ator Coadjuvante e o megahit "Shallow" como melhor canção original. Quer ousadia? O ataque frontal ao racismo Infiltrado na Klan descolou o Roteiro Original e Olivia Colman venceu as favoritas (com o perdão do trocadilho) com seu retrato como uma doentia rainha Anne. Quer pra críticos? Roma levou. Pros jovens? Três prêmios para Pantera Negra deixar Kevin Feige todo bobo. E quer agradar o público mais tradicional? Vamos de Green Book: O Guia. E os fãs de filmes populares e bombásticos? Olha Bohemian Rhapsody no pódio.

No final, todos estão um pouco surpresos e um pouco decepcionados. Todos receberam um afago nas costas e uma puxada de tapete. Foi completamente satisfatório? Nem um pouco. Está bom para empacotar tudo e jogar no lixo? Tampouco.

Voltemos à comparação inicial: o preço de tentar agradar todos é no final não agradar ninguém. 

Mas como diria o Monty Python, "always look on the bright side of life". O perfil dos eleitores começa a mudar: não é mais apenas o homem branco e idoso, mas entre os novos também temos negros, estrangeiros, mulheres e jovens, como bem observou o comentarista Arthur Xexéo na Globo. 

Ainda não passamos totalmente dos "#OscarsSoWhite", mas segundo o que informa a revista Exame, 774 convites foram enviados para 53 países em 2017 e os 683 novos membros em 2016 eram constituídos por 46% de mulheres e 41% "não brancos". O perfil estagnado há décadas começa a mudar.

E isso já surte efeito: mais estrangeiros vencem Melhor Direção que nunca: em 2010 tivemos a primeira mulher e desde então apenas Damien Chazelle correspondeu ao perfil mais ou menos clássico: pois lembremos que é também o mais jovem vencedor do prêmio. Ontem, Hannah Beachler foi a primeira mulher negra a ganhar o Oscar de Melhor Design de Produção (conhecido antigamente por Direção de Arte/Cenografia). Mais filmes caídos na graça da crítica e abordando temáticas duras sobre o racismo estão sendo indicados e vencendo do que nunca.

Ano que vem inicia-se uma nova década e, pelo jeito, um novo Oscar. A digestão dessa salada de perspectivas foi vista ontem, em uma burocracia que parece confusa mas em segunda análise é calculada: mudar sem chocar, com surpresas e decepções. 

Quase difícil resistir à leitura que foi um retrato fidedigno de tempos fragmentados, tudo ao mesmo tempo agora. Se sempre foi impossível agradar a todos, em um tempo onde raios e trovões chovem sobre tudo e todos, ontem foi sintomático. 

Afinal de contas, todos estão sujeitos a receber as pedradas textuais: os de um lado, os do outro  e aqueles em cima do muro. No dilema do jovem, do velho e do burro ninguém escapa. Mas não podem impedir que se tente, afinal de contas.

(Agradecimentos ao colega editor Francisco Carbone, pois o que começou como comentário de sua coluna terminou como essa extensa divagação).

Comentários (3)

Alan Nina | terça-feira, 26 de Fevereiro de 2019 - 16:54

É meio estranha essa lógica, pois tipo, se analisa uma categoria em função de várias. Na linha do "Ah vamos dar roteiro pro Spike Lee, daí não precisa melhor filme". Isso é bem preocupante, o termo usado "rateio" , mais do que mostrar uma engrenagem de funcionamento, mostra na verdade o descrédito da premiação, pois não se analisa a categoria em si, e sim o funcionamento orquestrado pra agradar vários públicos (e de fato, acabar não agradando, perfeita alusão).
Isso é o Oscar.

Bernardo D.I. Brum | terça-feira, 26 de Fevereiro de 2019 - 17:38

Como é, só quem está por dentro sabe. A impressão que se dá é que sim, dado o desgaste, mesmo se levarmos em conta que a votação foi totalmente espontânea, não houve um "vencedor moral" e que não houve nenhuma "derrota absoluta", pois podemos reparar que todos os principais 8 players foram contemplados. Então não houve nenhum agrado ou desagrado completo, apenas uma insatisfação morna.

Abdias Terceiro | quarta-feira, 27 de Fevereiro de 2019 - 02:18

Apenas verdades inconvenientes, mas ainda verdades.

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