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A Corrida do Ouro: de volta ao passado

No último texto sobre a Corrida, eu disse desde o título que a briga da noite passada se daria entre um progressismo que pouco a pouco a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas vinha empenhando esforços em realizar nos últimos anos X a ameaça da onda conservadora que varre a política nos quatro cantos do mundo, com morais antiquadas e uma visão de mundo que remete a um discurso de um inclusão de boutique, na verdade versando sobre um moralismo e uma higienização sobre os temas pertinentes. Pois bem, a Academia amarrou a noite com o que eu imaginava, um retorno 30 anos no tempo e dois grandes vencedores para manchar os acertos da noite.
Na pauta, tínhamos Pantera Negra, um filme de heroi de elenco 98% afro americano, com uma mensagem de empoderamento negro e feminino muito atual (3 Oscars - trilha, figurino e direção de arte); Infiltrado na Klan, o revisionismo de Spike Lee à luta de seu próprio povo com uma história não apenas real como atual e reverberante (1 Oscar - roteiro adaptado, para um esfuziante Lee); Roma, um grito pela equiparação de direitos, emocionais e pessoais, entre classes sociais (3 Oscars - direção, filme estrangeiro e fotografia, todos para as mãos de Alfonso Cuaron); A Favorita, uma declaração de amor a supremacia feminina em todas as instâncias, políticas, históricas e emocionais (1 Oscar - a espetacular reviravolta de Olivia Colman, fazendo Glenn Close chorar pela sétima vez). Mas nada disso fez completamente sentido ou foi compreendido por eles.
Na mesma década que premiou 12 Anos de Escravidão, Birdman, Spotlight, Moonlight e A Forma da Água, a Academia puxa o freio de mão e decide que os avanços estéticos e temáticos estavam errados. Com toda a potência possível pra escolher, os dois filmes mais bem sucedidos da noite foram a trajetória do maior rock star de todos os tempos contada da forma que só o Wikipedia se orgulharia e tirando qualquer ambiguidade da sua relação com a homossexualidade que era parte integrante de quem ele era, e uma história de "luta contra o racismo" contada exclusivamente por brancos, através de um personagem branco, que move sua história de observação e regeneração através de sua relação sobre um espécime raro: o negro. 
Resumo da ópera: amamos nossos amigos de diferente orientação sexual e cor que a nossa, contando que possamos subverter a importância que essas histórias poderiam ter ao mundo. Freddie Mercury e Don Shirley eram dois virtuoses que mereciam uma visão mais complexa sobre sua passagem e acabaram servindo a projetos de videoclipe biográfico e expiação de culpa branca que além de tudo não escondem como são, acima de tudo, um cinema raso e pobre esteticamente. E com isso perde o Oscar, e não os outros filmes. Reconhecer desserviço social é extremante grave, embalar isso por um cinema indigente é ainda mais vergonhoso.
No fim das contas, só a Academia sai arranhada. Acertos como o Oscar de Olivia Colman, de Spike Lee, de Homem-Aranha no Aranhaverso, de Free Solo, de Mahershala Ali, das históricas vitórias de Ruth E. Carter e Hannah Beachler pelo visual de Pantera Negra, parecem pequenas. Empalidecem. Mas seus filmes e artistas engrandeceram. A Rede Social, Boyhood, Brokeback Mountain, Gosford Park, vocês tem companhia. Crash, você também.
À Netflix (produtora de Roma), foi um bom começo... o tempo irá dizer se o preconceito foi maior com o serviço de streaming, com a língua falada no longa de Cuaron, ou um combo de ambos; The Irishman, o novo longa de Martin Scorsese também bancado pela poderosa plataforma, foi anunciado durante a premiação e com certeza é o próximo passo da mesma em direção a Academia. A noite terminou com um gosto agridoce, e a categoria de melhor atriz foi um amálgama do todo. E a certeza de que, ano que vem, a premiação não terá outra coisa a fazer a não ser melhorar... parece impossível nesse momento piorar. Será? 
Abaixo, os vencedores do Oscar:
FILME: 'Green Book'
DIREÇÃO: Alfonso Cuaron, 'Roma'
ATOR: Rami Malek, 'Bohemian Rhapsody'
ATRIZ: Olivia Colman, 'A Favorita'
ATOR COADJUVANTE: Mahershala Ali, 'Green Book'
ATRIZ COADJUVANTE: Regina King, 'Se a Rua Beale Falasse'
ROTEIRO ADAPTADO: 'Infiltrado Na Klan'
ROTEIRO ORIGINAL: 'Green Book'
ESTRANGEIRO: 'Roma'
ANIMAÇÃO: 'Homem-Aranha no Aranhaverso'
FOTOGRAFIA: 'Roma'
MONTAGEM: 'Bohemian Rhapsody'
FIGURINO: 'Pantera Negra'
DIREÇÃO DE ARTE: 'Pantera Negra'
TRILHA SONORA: 'Pantera Negra' 
CANÇÃO: 'Shallow', de 'Nasce uma Estrela' 
MAQUIAGEM: 'Vice' 
EFEITOS ESPECIAIS: 'O Primeiro Homem'
EDIÇÃO DE SOM: 'Bohemian Rhapsody' 
MIXAGEM DE SOM: 'Bohemian Rhapsody
DOCUMENTÁRIO: 'Free Solo' 
CURTA - FICÇÃO: 'Skin' 
CURTA - ANIMAÇÃO: 'Bao' 
CURTA - DOCUMENTÁRIO: 'Period. End of Sentence.' 

Comentários (4)

Adriano Jorge | segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2019 - 15:08

Não é opção sexual, é orientação. E o esquema nem é sobre lugar de fala, é que Green Book é ruim mesmo.

Alan Nina | segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2019 - 18:49

O filme Green Book é sim um filme de brancos que fala sobre o racismo, a questão é: isso, por si, é ruim? Desconfio que não seja pra tanto. Afinal, o racismo precisa dialogar com pessoas brancas, da mesma forma que héteros precisam se conscientizar da homofobia, e homens precisam compreender machismos e om movimento feminista. Obviamente que há importância do lugar de fala e empoderamento, mas não exclusividade. Neste sentido, não acho um desastre Green Book, embora preferia Infiltrado ou A favorita, no entanto, o filme ser um filme de branco sobre racismo é muito diferente de ser um filme racista.

Bernardo D.I. Brum | segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2019 - 23:01

Não acho que Green Book deveria ganhar não apenas por ser um grande enlatado feito para ganhar prêmio que logo vai ser esquecido (como são grande parte dos filmes feitos visando isso), como também era o mais sem apelo: menos formalmente provocativo, menos números, com as críticas mais morna. Não tinha a popularidade de Bohemian Rhapsody, Nasce Uma Estrela e Pantera Negra, não tinha a aclamação crítica de Roma, A Favorita e Infiltrado na Klan ou um mínimo de esforço criativo que nem Vice. Aliás, filmes que nem foram indicados a Melhor Filme foram muito melhor recebidos que Green Book.

Pra mim, a única explicação possível é tipo quando premiaram Crash: quando tem muito candidato forte, ou toma partido de vez (tipo quando premiaram Onde Os Fracos Não Tem Vez), ou escolhe o mais medíocre porque qualquer outra iria gerar uma polarização imensa (tem gente que não se conforma 12 anos depois com a derrota de Sangue Negro). A famosa bunda-molice, hahaha

Antonio Montana | terça-feira, 26 de Fevereiro de 2019 - 13:08

Tudo como o esperado, Oscar sendo Oscar. Infelizmente ainda se dá muito valor à pseudo premiação mais importante do cinema...Todo ano eles apresentam o mesmo roteiro batido, nem o suposto twist da vitória de Olivia Colman foi surpreendente, já que premiar a atriz principal do que deveria ser o melhor filme também já está batido...Felizmente sempre teremos Cannes.

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