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A Corrida do Ouro: transição vs. conservadorismo

Por conta da montanha de trabalho na cobertura da Mostra Tiradentes, fiquei devendo uma análise final sobre o grupo de indicados que saíram no último dia 22 de janeiro. De qualquer maneira, semana passada um podcast especial sobre os indicados foi ao ar, comigo, Heitor Romero, Cesar Castanha e Bernardo Brum de 'host'; juntos, nós dissecamos a movimentação desse ano e os caminhos que a Academia seguiu pra escolher esse grupo que, a olho nu, parece igual ou pior que o dos últimos anos, mas uma olhada com maior atenção revelou umas verdades nada convenientes. 
Talvez a lista tenha sido surpreendente, não pelo grupo geral; quando olhamos para o quadro, isso não salta aos olhos, mas categoria por categoria alguém fora do comum apareceu, e nas técnicas essas surpresas foram ainda mais claras. No entanto, há 5 dias da premiação, a surpresa fica a cargo do estado das coisas hoje, ainda mais acachapante que mês passado. Vejamos:
Sindicato dos produtores: Green Book 
Sindicato dos diretores: Roma 
Sindicato dos atores: Pantera Negra 
Sindicato dos roteiristas: Eight Grade e Poderia me Perdoar? 
Sindicato dos montadores: A Favorita e Bohemian Rhapsody
Sindicato dos fotógrafos: Guerra Fria 
O que esses filmes têm em comum? Bem, não muito. O que os une de cara é o fato de que nenhum desses títulos se repetiu em nenhum desses dos mais importantes e decisivos grupos de profissionais da indústria cinematográfica americana. Cada título ganhou um prêmio, quase uma decisão salomônica para 'ninguém brigar'. A ironia é que desse jeito, a briga no domingo parece aberta em mais categorias do que costumamos encontrar a essa altura. 
Em um ano com tantas decisões 'desdecididas' (a criação de uma categoria de 'melhor filme popular' - o cancelamento da categoria; apenas duas canções apresentadas - as 5 canções serão apresentadas; Kevin Hart apresentador - nenhum apresentador; 4 categorias sendo apresentadas nos intervalos - todas as categorias apresentadas ao vivo), a Academia vai encerrar a temporada de maneira imprevisível pra onde se olhar. 
Efetivamente o 'melhor filme popular' não deu as caras oficialmente, mas era de se imaginar que esse (a principio) cancelamento fosse abrir as portas para um grupo de filmes que atendesse à essa demanda, na verdade uma boba tentativa de alavancar uma audiência que, a bem da verdade, nunca mais voltará a ser como há 20 anos; o mundo mudou, as pessoas também com os seus hábitos, e inclusive o Oscar pode ser assistido não pela madrugada afora mas no dia seguinte de manhã. Ou no mês seguinte. Ou quando o interessado tiver tempo, como praticamente todo o produto audiovisual hoje. Se manter escravo dessa lógica antiquada é um erro que a direção da instituição deveria abrir mão, pelo bem dos fãs da festa. Os interessados estarão hipnotizados no domingo, e querem ver todas as canções, todas as categorias. 
Pois os filmes populares vieram, quase totalizando a categoria principal. Temos  maior bilheteria do ano, a maior surpresa em bilheteria do ano e a enorme bilheteria que sempre se imaginou que estaria aqui - 'Pantera Negra', 'Bohemian Rhapsody' e 'Nasce uma Estrela', respectivamente. Atrás, vem três filmes cujas bilheterias não foram astronômicas, mas que poderiam ter sido e houve tentativa - 'Green Book', 'Infiltrado na Klan' e 'Vice'. Ou seja, três blockbusters de fato e de direito, e três filmes que teriam potencial para muito mais do que fizeram. Pois bem Academia... cadê o cinema indie? 
Vejam bem, desde 2003, todos os anos pelo menos um filme indicado na categoria príncipal estava também indicado ao Independent Spirit Awards, o Oscar dos filmes 'indies'; em 2011, '13, '14, '15 e '16, os vencedores de ambos foram os mesmos (O Artista, 12 Anos de Escravidão, Birdman, Spotlight e Moonlight). Pois essa feliz coincidência foi quebrada esse ano, o que é uma das provas de que a Academia resolveu se popularizar, deixando grandes filmes que a crítica abraçou de fora, como o já citado Eight Grade, Se a Rua Beale Falasse e principalmente First Reformed, o incrível último filme de Paul Schrader que deu ao diretor sua chocante primeira indicação ao Oscar - ao menos o roteiro do filme não foi esquecido. Creio que a pressão do ano, unido a um tímido trabalho de marketing desses filmes menores, tenham contribuído para suas injustas exclusões.
A Academia acabou elegendo sim dois filmes artísticos de tendências menos comerciais e os empatou no número máximo de indicações, ironicamente os dois filmes com menor DNA americano dos concorrentes desse ano, Roma e A Favorita. Em uma lógica antiquada oitentista, seriam os filmes com maiores chances de vitória, mas os tempos são outros e o número de indicações hoje é só um entre tantos fatores, que são cruciais em uma temporada e completamente irrelevantes na outra.
De fato o longa de Alfonso Cuaron em preto e branco ainda tem esse favoritismo ao seu lado, mas briga nessa reta final com Green Book e Pantera Negra, que no fim das contas talvez seja o trio simbólico da temporada. Roma representa a ascensão do streaming como aliado do cinema, permitindo a criação de obras poéticas, humanas e de grande teor artístico como ela; o longa de Ryan Coogler é o ponto máximo do 'black power' na indústria americana atual, que começou com 12 Anos de Escravidão e foi até Corra! ano passado, aqui munida também da representação racial dentro do universo das HQs, nessa inédita indicação do segmento na categoria principal; e o filme de Peter Farrelly representa o oposto desses dois, mais um retrocesso do bonde da História na sétima arte, que faria com que num piscar de olhos voltássemos ao menos 30 anos no tempo em sua narrativa obsoleta e imageticamente sem qualquer atrativo. Em comum aos três, a genuína emoção que provoca nos espectadores, cada qual com seus motivos.
Apenas quatro nomes sabem que suas subidas ao palco serão inevitáveis: Rami Malek, Glenn Close, Lady GaGa e Alfonso Cuaron. O primeiro, que há 4 meses atrás não fazia ideia de que poderia ser sequer indicado, virou um favorito inconteste dada a paixão avassaladora que o público e (mais inexplicavelmente) a indústria e os votantes demonstram ter por Freddie Mercury, o Queen e a sua história - e a enésima vez que as premiações dirão que mimetismo é um avalista do talento. A segunda é uma das cinco maiores atrizes americanas do nosso tempo, que esse renovou seu recorde de sete indicações sem prêmio, finalmente sendo reconhecida como a fantástica atriz que há quase 40 anos o mundo admira. A terceira estrelou e compôs a música mais cantada do ano passado e obteve indicações nas duas áreas, sendo que Shallow a fará detentora de sua primeira estatueta. E o quarto tem a chance de engordar exponencialmente sua coleção de bonecos dourados (em casa ele já tem dois, por Gravidade); levando em consideração que ele briga por CINCO, e que é barbada em pelo menos uma, eu acho bastante provável que ele vá precisar de uma sacola no domingo.
Todas as outras categorias estão abertas, algumas com duas hipóteses, outras com três, inclusive tendo algumas cuja premiação está impossível de prever; por exemplo, algum consegue casar um dinheiro nas categorias de som? Consolação para Pantera..., o mesmo caso para O Primeiro Homem, a escolha óbvia de Bohemian Rhapsody, uma surpresa pro espetacular trabalho de Roma? Em montagem, conseguimos ver a maioria dos indicados com chance de vitória, assim como em trilha sonora.
Não fugirei de me arriscar, e jogo aqui embaixo minhas apostas finais em cada categoria:
FILME: Roma
(ameaça: Green Book e Pantera Negra)
DIREÇÃO: Alfonso Cuaron, Roma
(ameaça: nenhuma, mas Spike Lee é a união ideal entre clássico e moderno)
ATOR: Rami Malek, Bohemian Rhapsody
(ameaça: a essa altura não tem, mas Christian Bale também está fantasiado)
ATRIZ: Glenn Close, A Esposa
(ameaça: Olivia Colman? Será?)
ATOR COADJUVANTE: Mahershala Ali, Green Book
(ameaça: Richard E. Grant é uma força da natureza e foi o campeão crítico)
ATRIZ COADJUVANTE: Regina King, Se a Rua Beale Falasse
(ameaça: nenhuma convicção nessa vitória, Rachel Weisz e Amy Adams não estão mortas)
ESTRANGEIRO: Roma
(ameaça: Guerra Fria super pode acontecer aqui)
ROTEIRO ORIGINAL: A Favorita
(ameaça: Green Book... ou o nome - e o talento - de Paul Schrader fazem diferença?)
ROTEIRO ADAPTADO: Infiltrado na Klan
(ameaça: aos 45 do segundo tempo, Poderia me Perdoar? acordou)
FOTOGRAFIA: Roma
(ameaça: Guerra Fria de novo na cola de Cuaron)
MONTAGEM: Vice
(ameaça: Infiltrado na Klan, A Favorita e Bohemian Rhapsody, tudo ameaça)
FIGURINO: Pantera Negra
(ameaça: A Favorita)
DIREÇÃO DE ARTE: A Favorita
(ameaça: Pantera Negra)
TRILHA: Pantera Negra
(ameaça: Infiltrado na Klan e Se a Rua Beale Falasse)
CANÇÃO: Shallow, de Nasce uma Estrela
(ameaça: ninguém)
EDIÇÃO DE SOM: Bohemian Rhapsody
(ameaça: todos os outros)
MIXAGEM DE SOM: O Primeiro Homem
(ameaça: todos os outros)
EFEITOS: Vingadores: Guerra Infinita
(ameaça: Jogador Número Um e O Primeiro Homem)
ANIMAÇÃO: Homem-Aranha no Aranhaverso
(ameaça: medo da Disney/Pixar...)
DOCUMENTÁRIO: RBG
(ameaça: essa categoria costuma surpreender, então pode ser Free Solo ou pode ser Minding The Gap)
Nossa, foi intenso esse ano. E tenho pra mim que um conjunto de fatores aponta que essa impresivibilidade pode se firmar cada vez mais, em se tratando de premiações da temporada no geral e do Oscar em particular. Nos últimos anos já temos tido taquicardia até a abertura do último envelope, e esse ano acho que será especial nesse sentido. Aguardem as surpresas, elas inevitavelmente virão. 

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