Tobe Hooper foi um dos cineastas que melhor adaptou a obra de Stephen King, mas, vira e mexe, acaba completamente esquecido quando quer se discuta a transposição para as telas dos livros e contos do mestre do terror contemporâneo - De Palma, Kubrick, Darabont são os nomes comumente citados, sempre lembrados. Muito disso deve-se ao fato de que relativamente pouca gente acessa as adaptações de Hooper e menos ainda apreciam o estilo do diretor. Os Vampiros de Salem ainda goza de algum reconhecimento, mas este Mangler é facilmente um título colocado no segundo ou terceiro escalão dentro da própria filmografia do cineasta - uma grande injustiça, afinal.
A estética do horror de Tobe Hooper encontra forte alicerce na cenografia, concepção celebremente trazida ao Cinema, ainda na era muda, pelo Expressionismo Alemão: a íntima relação entre câmera, personagem e cenários, os quais exteriorizam, de forma bastante estilizada, a tortuosidade dos indivíduos que conduzem a trama, foi e continua sendo explorada por uma série de diretores, encontrando em Hooper um dos seus mais fascinantes e singulares artesãos. A decrepitude e a sujeira constantemente retratada pelo cineasta em seu fascínio pelo interior obscuro da América, antro e esconderijo dos mais diversos tipos de psicopata, refletem a podridão dos seus personagens insanos e são essenciais para lastrear a organicidade da loucura que permeia suas histórias.
Além da cenografia, a estilização do diretor frequentemente busca outra ferramenta bastante valiosa: as luzes policromáticas. São elas as responsáveis pelo deslocamento completo do espectador para a insanidade exposta - afinal, a busca por um realismo constituiria forte contradição ao absurdo que habita a filmografia do diretor. Ademais, não interessava a Hooper demonstrar quão suja, violenta e decrépita pode ser a realidade, pretensão não raramente trazida por cineastas com visão de mundo bastante unidimensional que a expressam por meio de um fatalismo fetichista, mas, sim, levar essa podridão para um universo gritantemente ficcional que a reflita e alegorize com toda a liberdade possível para as mais diversas distorções. Uma grande paixão pela ficção, pela mentira do Cinema, é o que se vê nos filmes de Hooper, mesmo naqueles que mais se aproximem de um relato com pretensões realistas, de provocar o horror pela aparente veracidade, como o primeiro O Massacre da Serra Elétrica. E é esse fervor pelo ficcional que abre a cancela para os seus excessos.
Excessos, aqui, pontue-se, não possui conotação pejorativa, assim como quando se utiliza o termo para se referir, por exemplo, a Brian De Palma. O conjunto formado pela cenografia decrépita, as luzes coloridas, o overacting dos atores (que, assim como em David Lynch, faz todo o sentido em seus particulares universos diegéticos) e a loucura das tramas formam combos excessivos como poucos vistos no cinema americano. A insanidade atinge raias tão elevadas certas vezes que o humor negro, em Mangler apenas pontual, faz-se também explodir, como na incrível caralhada que é O Massacre da Serra Elétrica 2, um de seus melhores filmes. Resta evidente, assim, que Hooper era um dos mais competentes construtores de atmosfera horrorífica do gênero, qualidade indispensável para o sucesso de uma adaptação de Stephen King.
A precisa cadência narrativa encontrada em Os Vampiros de Salem já demonstrava que as preocupações de Hooper em bem desenvolver trama e personagens muito se identificavam com as de King, o que sustenta e torna orgânico o brutal do (às vezes sobre)natural que frequenta a obra de ambos. Em Mangler, há espaço suficiente para a trajetória de superação de traumas do investigador protagonista, para a ilustração do ambiente corrupto das instituições e das relações de poder nas cidades interioranas da América e para a alegoria central sobre o industrialismo, características tão importantes nas obras de King - afinal, para o mestre do horror, o impacto não se deve à sanguinolência ou à aparição dos monstros bizarros, mas, sim, ao impacto desses eventos e elementos na vida dos personagens, sempre pulsantes e cheios de vida, que materializam figuras das mais típicas daqueles Estados Unidos, no mais das vezes, longe das grandes metrópoles.
Se em Carrie o grande tema é o bullying e o fanatismo religioso, em O Iluminado, o alcoolismo e a febre da cabana, e em O Cemitério, o luto, vemos em Mangler - que se origina de um conto, ao contrário desses outros três, que vieram de romances - o industrialismo como tema central. Não que a eleição de um assunto específico como base do horror de determinada trama o exclua de outras obras de King: vê-se esses elementos constantemente na literatura do mestre, recebendo, no entanto, níveis de atenção diferentes. Aqui, os holofotes direcionam-se à obsessão capitalista pela produção desenfreada, pelo enriquecimento e pela manutenção do status quo e os sacrifícios feitos em obediência a ela, materializados pela figura monstruosa da máquina que literalmente come gente.
A tão importante espacialidade de Hooper se expressa aqui em movimentos de câmera que exploram a área da lavanderia industrial, como o travelling de abertura, que apresenta o espaço e a máquina-monstro, revelando desde logo que o que está por vir é como uma versão de terror hardcore da sequência da fábrica de Tempos Modernos, na onipresença da fumaça que traz consigo um forte ar de sobrenaturalidade e na preferência pelo contra-plongée (a câmera posicionada abaixo do nível dos olhos), que não somente traduz em sua tortuosidade angular a esquizofrenia dos personagens e o absurdo da situação, como também denota relações de poder (a exemplo do travelling giratório em torno do rico e bizarro empresário e da nova funcionária, na cena em que o primeiro se impõe sobre a segunda, objeto de seu desejo sexual) e evidencia a relação de identidade entre a decrepitude dos cenários e a podridão dos personagens, registrando, também com maior destaque, as luzes policromáticas que gritam a ficcionalidade da trama.
As luzes coloridas, para além do forte efeito estilizatório, são utilizadas como sinalizadores do conflito bastante recorrente nas obras de King e que em Mangler também marca presença: a luta do bem (não raramente, como aqui, identificado com a expressão institucionalizada da espiritualidade humana: a religião) contra o mal. O primeiro, vinculado ao azul que sempre acompanha o detetive; o segundo, associado ao vermelho que irradia da máquina-título. Detalhe relevante e enriquecedor encontra-se em como o azul é utilizado não somente para demonstrar o bem em essência, que é o caso do detetive e de seus amigos, mas também o bem em aparência, que se encontra nas vestes de personagm-chave na cena final e no nome da própria lavanderia - Blue Ribbon - onde se localiza a materialização do mal de todo o filme: o uso das cores, nesse caso, potencializa a sensação de lobo em pele de cordeiro, do horror travestido de normalidade e apaziguamento, elemento tão caro a qualquer obra do gênero e gerador de sua verdadeira tensão - a noção do mal à espreita, sob a superfície, pronto a atacar a qualquer momento.
Este filme é um dos melhores filmes do Hooper. E um dos grandes da década. A estética exagerada de Hooper remete ao absurdo dos anos 80 na violência, pessimismo e soma-se ao caráter de sarro dos 90. Tudo muito bem engendrado neste exagero. Em tempos de estéticas mecânicas, as críticas à este exagero são cada vez mais fortes. O que é uma merda. Ora um filme sobre uma máquina de lavar assassina já abre pro escopo do absurdo no seu nascedouro. A abordagem do Hooper é perfeita nisso.
Excelente texto aliás.