Cronenberg já declarou diversas vezes ser fascinado por carros. No entanto, tal objeto de desejo foi poucas vezes o fio condutor das tramas de seus filmes. Para os mais bem informados, é sabido que Crash é a segunda produção do auteur a tratar do assunto.
Dezessete anos antes de realizar o polêmico filme protagonizado por James Spader, David Cronenberg havia rodado Fast Company, notadamente a produção mais divergente de sua coesa filmografia. Li certa vez que o diretor canadense só havia aceito tal projeto por uma questão financeira, já que até então só lançara dois longas em circuito comercial, cujas rendas mesmo tendo superado seus baixos orçamentos, não seriam capazes de financiar futuros projetos mais ambiciosos (que lhe proporcionassem evoluir profissionalmente) e, ao mesmo tempo, bancar o sustento de sua família.
A despeito do tema central, Fast Company e Crash pouco tem em comum. 'Ok, além de carros tem sexo, mas qual filme de Cronenberg não tem?' Me refiro à história como um todo. Fast Company é quase (quase porque os filmes de Cronenberg podem ser tudo, menos convencionais e previsíveis) uma típica produção sobre corridas, cuja pretensão não visa nada muito além de retratar a vida de curtição de quem ganha a vida se aventurando, literalmente, à toda velocidade; já Crash propõe algo mais profundo, digamos. Nele há a exploração do viés psicológico sobre o comportamento arriscado que alguns são capazes de assumir, simplesmente para satisfazer suas necessidades de prazer.
Adaptado do romance homônimo escrito por J.G. Ballard, o roteiro elaborado por David Cronenberg me direcionou, num primeiro momento para uma reflexão acerca dos meios para se alcançar o prazer. Eles podem variar individualmente, mas a partir do pressuposto de que ninguém além da própria pessoa que se envolva nessa busca errante possa ser prejudicada, qual o limite para tal? Se a sensação de perigo, assim como o sexo são as fontes preferidas de um grupo de indivíduos que em nada interferem na sociedade circundante, qual o problema nisso? Com certeza outras discussões podem surgir no debate deste filme, mas creio ser a questão supracitada a mais facilmente inferida pela grande parcela de sua audiência e, por tal razão a única, que acho relevante levantar.
O maior mérito de Crash é mostrar que Cronenberg pode sempre se superar. Desde Calafrios, o "Baron of Blood" ("Barão do Sangue"), "Dave deprave" (algo como "Dave depravado") ou tantos outros apelidos carinhosos dados ao realizador canadense de Toronto, demonstrou claramente ser um de seus objetivos como cineasta, confrontar-se com o moralismo. Desde de 1975, para o mundo, Cronenberg é um dos seres mais subersivos e ousados (se não o mais ousado) a surgir no meio cinematográfico. No entanto, em 1996, com Crash, ele conseguiu surpreender até mesmo aqueles que já acreditavam saber o que esperar de suas obras. Simplesmente por esta razão, considero o filme indispensável, tanto para aqueles que se interessam pelos trabalhos de Cronenberg, quanto para aqueles que pretendem conhecer mais além da produção hollywoodiana.
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