(Texto publicado originalmente no blog Domicilio Cinematográfico: https://domiciliocinematografico.blogspot.com.br/2017/04/critica-adeus-dragon-inn-2003.html)
Esquecer jamais.
Na sétima arte, sempre se apresentou diversos filmes cuja ideia narrativa é exibir o cotidiano, que por vezes sua representação poderia ser algo nada mais que ordinário, porém, as distintas óticas de inúmeros diretores decidiram mostrar algo incomum. Seja por parte de Yasujiro Ozu, que registrou em seus filmes toda a beleza que os inocentes atos do dia a dia possuem, ou pela visão de Jim Jarmusch, que vai justamente ao contrário do cineasta japonês: sempre resguardando uma angustia dos intermináveis, exasperantes e entediantes dias, propagando assim um teor crítico em seus filmes, que consequentemente desconstruía o sonho americano, afrontando expectativa e realidade (algo que se perpetua especialmente na obra Estranhos no Paraíso, de 1984).
E ao decorrer de sua formação, o cinema também desenvolveu uma classificação fílmica denominada de "Chamber Film". Tratam-se de filmes cuja história se forma em único lugar, curto período de tempo e poucas personagens. "Chamber Film" se alastrou pela maioria dos gêneros, sendo visto desde a década de 1950, com dramas como 12 Homens e Uma Sentença, indo pela ficção cientifica oitentista de O Enigma de Outro Mundo, e passeando pelos tenebrosos e truculentos diálogos de Quentin Tarantino, em Os Oito Odiados.
Consequentemente, essa classificação se cruzaria com tramas que abordam as horas de um dia comum. Mas, como já citado, cada visão cinematográfica altera o sentido desse ideal. Que por ora pode se explorar questões de ética e moral, e por ora pode analisar os conflitos gerados por relações humanas. Mas poucas conseguiram relacionar a memória por meios degradados. E o que seria o objeto deteriorado utilizado por Ming-liang Tsai como artificio para demonstrar o encerramento de um ciclo? O cinema?. Para os que analisarem o Adeus, Dragon Inn de forma superficial, sim. Mas a obra de Tsai não pode ser resumida apenas como um filme vazio, praticamente niilista.
O filme se passa em uma noite chuvosa em Taiwan, esta que é a última vez que um cinema se abre para o público. Com poucos espectadores, é projetado na tela um clássico comercial asiático: Dragon Inn. Porém, a sessão manifesta uma atmosfera soturna, com poucos realmente interessados pela questão de que o estabelecimento está dando um adeus para todos. A trama é escassa de diálogos, optando por escolher uma narrativa que se explica pelas imagens. Essas imagens registram que o principal personagem da trama é o mais improvável de uma obra cinematográfica: o próprio cinema. Com isso Tsai responde que Adeus, Dragon Inn não trata do fim de uma arte, e sim da personificação da mesma, dando uma vida à ela, e consequentemente um ciclo vital. E quando uma vida deixa de legado os bons e angustiantes momentos, cria-se as memórias. E quando investigadas, as memórias passam a ser um artefato de tempo e espaço. Tudo isso sendo visto pelas imagens em movimento gravadas por Tsai, proporcionando uma experiência nada menos que sensorial e visceral para os olhos de quem assiste, despertando a colcha de retalhos que molda todas as vidas: as lembranças de cada tempo significativo na nossa formação de ser humano.
Não se trata de um ápice técnico, mas sim de um primor narrativo, com nuances soltas pelo ambiente, que por meio da metalinguagem, criam uma afeição que direciona o espectador à um local que aparenta ser sujo e despedaçado, mas que ao mesmo tempo carrega toda a felicidade daqueles que gastaram preciosas horas com entretenimento disperso em filmes. Também não se trata de algo incomum, e sim de algo tão comum como a vida, como nosso dia a dia, como nossos atos, como nossas decisões, como nossas lembranças e emoções, como nossa percepção do mundo, e a variável visão que o ser humano apresenta na formação do tempo, que se aplica em todos os tipos de questões ideológicas e sociais.
Por fim, vemos uma antítese: a queda de um cinema enriquece uma das mais intrigantes e profundas obras da sétima arte contemporânea, alertando que sim, o cinema um dia virá em acabar, mas sua vida manterá eterna no coração dos apaixonados pelas imagens em movimento e toda sua essência de recordar algo que jamais vamos esquecer no decorrer da arte e de nossas vidas: as memórias.
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