A dissecação da alma por Sidney Lumet
Um dos mais talentosos cineastas americanos, Lumet dirigiu grandes filmes emblemáticos como ‘Rede de Intrigas’, ‘Serpico’ e ‘Um dia de cão’. Esses três abordam personagens um tanto deslocados do meio em que vivem, mas que acabam chamando atenção.
Em ‘Longa jornada noite adentro’, Sidney Lumet adotou outro estilo de história para filmar. Uma família de aparência perfeita se reúne na casa de campo do patriarca, o descendente de irlandeses e ator de sucesso James Tyrone (Ralph Richardson, ‘Greystoke – a lenda de Tarzan’) e de sua esposa, a adorável Mary Tyrone (Katharine Hepburn, ‘Núpcias de escândalo’). De início, expõem-se os problemas dos filhos, o mais velho, Jamie (Jason Robards, ‘Todos os homens de presidente’) é um ator fracassado e alcoólatra, o mais novo, a jóia da família, Edmund (Dean Stockwell, ‘De caso com a máfia’) tem sua vida ameaçada pela tuberculose. Entretanto, quando a névoa vai acuando a família dentro de casa e a noite vai caindo, os problemas familiares vão surgindo, enquanto as máscaras se quebram.
Os personagens ainda tentam reagir, em deixar que seus egos interiores, frágeis, não se mostrarem. A relação polarizada entre o velho James e o filho Jamie é uma das mais conflitantes. Ambos atores, eles se mostram completamente diferentes, em relação aos problemas de cada um. Enquanto James tenta esconder e fingir que tudo é perfeito, Jamie quer jogar na cara do pai que tanto o rejeitou que os outros também são asquerosos e sujos como ele. Jamie tenta levar Edmund também para a sarjeta, mas se arrepende e reconhece seu egoísmo. Jamie é o filho carente de atenção, que sempre foi posto em segundo plano, primeiro pelo talento de Edmund como escritor, depois com a sua doença. O velho James, rico e sovina, não aceita pagar muito para uma reabilitação do filho mais novo. O patriarca usa de sua desculpa de infância difícil para ser mesquinho e ganancioso, negligenciando até a própria saúde do filho mais novo.
Edmund é o mártir que tenta reunir os cacos da família. Em uma das cenas de maior dramaticidade, em que Jamie, bêbado, olha para ele e diz “você é meu Frankenstein!” sintetiza a relação entre os irmãos. Edmund sempre se espelhou no irmão e este fez de tudo para trazê-lo para junto de sua decadência. Consciente da gravidade de sua doença, ele tenta trazer de volta cada um de seus problemas. A mãe, que não aceita a realidade, o pai, sovina e orgulhoso, e o irmão, conformado a um destino de autopiedade, mergulhado na conformidade de sua decadência. O amor que Jamie acha que não teve durante a vida é substituído pela sua situação de pena, em que ele mesmo se conforma que o único sentimento que ele vai ter na vida é de misericórdia. Entretanto, Edmund mostra que também ama o irmão.
Mary Tyrone, interpretada magnificamente por Katharine Hepburn, vive uma vida de ilusões. Ela é o centro da família, a que todos gostam. Ela é mimada pelo marido, que não consente que a verdade seja dita para ela, e quando é dita, ela não acredita. Viciada em morfina, ela alivia a dor de sua juventude perdida e de sua beleza que se esvai no mundo de ilusões da droga, enquanto se veste com seu vestido de noiva e corre pela casa. O complexo de Édipo entre Edmund e Mary é subentendido. Mary anseia por juventude e vê no filho como a sua própria juventude perdida. Mary dedicou toda a sua vida à família, e enquanto ela se quebra no andar debaixo, ela fica andando de um lado para o outro, fingindo que ainda é jovem. Os outros membros da família a tratam como criança, tentando de alguma forma recompensá-la.
A única coadjuvante do filme é a empregada de confiança da casa. Como uma sociedade herdeira da servidão e do escravismo, a sociedade ocidental sempre se acostumou em ter a “mucama” presente para fazer o que a família quer. Jeannie Barr interpreta Kathleen, a que conhece todos da família e seus problemas. Ela que compra a morfina para Mary, e enquanto, a família é acuada pela névoa e pela escuridão dentro de casa, Kathleen também é.
“Longa jornada noite adentro” é baseada na peça de Eugene O’Neill. É um filme sem ação e com poucos cenários, mostrando que os personagens não têm para onde correr. Para quem gosta de dramaticidade e de conflitos, da quebra de personagens, é essencial. Os dramas são quase ‘lispectorianos’ e Lumet é feliz ao dissecar a alma da família burguesa. Lumet é como Jamie e tenta jogar na cara do espectador que todas famílias têm problemas como os Tyrone. Fica a cargo de cada um ser um Edmund e tentar reunir os cacos, ser uma Mary, e ficar nas ilusões de um passado glorioso, ou ser um velho James, e fingir que tudo está bem.
Por “Longa jornada noite adentro”, Katharine Hepburn recebeu sua nona indicação ao Oscar de Melhor Atriz e a Palma de Ouro do Festival de Cannes de Melhor Atriz.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário