O cinema da extinta URSS tem do que se orgulhar, e este orgulho tem nome e sobrenome. Mikhail Kalatozov, este é o nome da "fera", em 1957 ele entregou de "bandeja" Quando Voam as Cegonhas, um drama sentimental de encher os olhos que mostrou ao mundo um potencial cinematográfico soviético até então desconhecido. Sua estilo de dirigir foi inovador para época e desbravou novos horizontes, chamando rapidamente a atenção, não demorou muito para seu nome ficar em evidência, de ilustre desconhecido, este camarada acabou se tornando uma referência do cinema mundial.
Escrito por Viktor Rozov, teve seu roteiro baseado em uma peça de Lew Wallace, sua obra aborda a vida de Veronika(Tatyana Samojlova) e Boris(Aleksei Batalov), um casal de namorados que estão apaixonados e são impedidos de se casar, pois ecoa pelos radios estatais soviéticos a convocação para a segunda guerra mundial. Veronika sem muitas informações sobre Boris durante a guerra, acaba se casando com Mark, primo de Boris, porém dentro dela ainda nutre um desejo de reencontra-lo e reviver todo os momentos que foram deixados para trás.
O grande lance do filme esta na carga dramática imposta por Kalotozov, Veronika é uma peça de oscilação e ao mesmo tempo uma engrenagem edificante do roteiro, ela significa o sofrimento de um povo por estar entregue há uma batalha sagrenta e mortal. Boris representa o espírito nacionalista(em suma maioria dos momentos, ufanista) que tomou conta do povo soviético sobre esta passagem crucial da história da humanidade. Kalotozov uniu estas vertentes e criou, até então, um desconhecido ponto de vista soviético sobre as cicatrizes do regime nazista.
Veronika é escancaradamente o ponto mais complexo do longa, seu embate psicológico e moral interno sobre a desistência de esperar seu amado, castiga ferrenhamente sua consciência. A forma como o roteiro tratou de sua fraqueza foi friamente calculado por Rozov, revelou uma consistência de relações pessoais altamente sensível sem estereotipar sua personagem, quando ela assumiu tamanho dilema e hesitação, deu alma e humanidade, é possivel sintetizar esta idéia através da cena na qual Mark possui Tatyana em meio a um ataque aéreo dentro do seu apartamento, é intrigante, o plano-sequência desta cena é muito bem feito, Kalotozov capta com precisão diversas expressões no meio de todo aquele caos redigido pelo bombardeio, vidros estilhaçados, barulho ensurdecedor e uma entrega até de certa forma, subjetiva, em poucos segundos e aliado a um solo de piano macabro, transforma este momento em uma entrega soturna e fúnebre, esta cena se transformou em uma obscura metáfora sobre o momento caótico que pairava sobre o povo soviético e principalmente sobre Tatyana em tempos de guerra .
Boris é uma personagem meramente ilustrativa da propaganda pós-Stalin e do governo estatal que bancava o longa, representava-se uma mobilização sentimental da URSS por uma busca incondicional de sua liberdade, porém seu personagem não foi meticulosamente trabalhado e nem trata-se de uma construção densa, Kalotozov priorizou e enfatizou Veronika, mas nem por isto, passa desapercebido a construção de uma imagem heroíca e nacionalista em suas entrelinhas, e porque não dizer competitiva, mediante a cortina de ferro e a guerra fria que acabara de se instalar entre URSS e EUA. Uma das cenas marcantes de Boris foi quando já no front, ele tenta socorrer um amigo ferido e acaba sendo alvejado, ele vislumbra uma mistura de flashbacks e alucinações sobre o seu desejo de se casar com Veronika, uma mistura onírica e inquietante que dissolve o senso de patriotismo, mesclado com uma sensação frustrante, ocorre um mosaico de sentimentos que transcreve aquele momento fatídico de forma abrangente e pulsante, um cinema de qualidade que somente alguém do porte de Kalotozov conseguiria captar de forma singular, toda sua totalidade.
Em uma era onde as câmeras eram mais rústicas e difíceis de "doma-las", Kalotozov literalmente brincava de malabarismos com ela, em termos técnicos, demonstrou estar anos luz a frente da maioria dos diretores de sua época, mesmo depois de décadas, o seu modo de filmar assusta até hoje, isto é, se levarmos em conta os recursos técnicos disponivéis naquele período, um grande trunfo "nas mangas" foi ter enquadramentos impecáveis, graças a Sergei Urusevsky, dono de uma fotografia eficiente e belissíma, fizeram uma dupla de talento, uma espécie de Pelé e Coutinho das câmeras quando o assunto era termos técnicos de filmagem, cenas inimagináveis através de sua grua, traziam a tona situações inesperadas e totalmente imprevisíveis. Em uma cena final, Veronika amargurada e desiludidade após ouvir comentários obscenos e nacionalistas de soldados feridos dentro de um hospital sobre as mulheres que deixavam a deriva seus parceiros no front para se casar, se sente culpada e com remorso por ter deixado Boris, ela acaba tentando o suicídio, porém no exato momento ela acaba salvando um menino que iria ser atropelado, a sequência de imagens é soberba, desde a aceleração dos movimentos até o jogo de câmeras, passando pela desordem visual até o estabelecimento da naturalidade, fixando um close suave e "soft", deixando um conturbado contraste sobre o que nos foi apresentado, deixa uma sensação de admiração, evidentemente genial, algo desta magnitude deixa qualquer um maravilhado com tamanha precisão e sensibilidade técnica de filmagem.
Em uma cena final, somos transportados para rostos desconhecidos e cansados da guerra que vão pouco a pouco se reencontrando com seus familiares em uma estação de trem, a busca desenfreada de Veronika por Boris no meio da multidão é um prato cheio para Kalotozov, sua destreza é testada e acompanhamos uma busca frustrante e melancólica a cada movimento de Veronika, a câmera vai literalmente passeando no meio do povão, desmembrando sorrisos e decepções como moeda de troco da guerra. A mensagem da propaganda vermelha ficou literalmente explícita para todo mundo ver no semblante emblemático de Tatyana, quando ela constata a morte de seu namorado e mesmo assim ainda consegue sorrir, evidência uma ideologia: Sacrifícios tem de ser executados por um bem maior, que é a liberdade e soberania de um povo, no mesmo instante é focalizado um avô levantando seu neto, no mesmo embalo e de carona, passa a idéia de que a vida prossegue e tudo foi feito em nome da garantia e do bem estar das gerações posteriores, algo antológico.
A belíssima Tatyana Samojlova acabou se tornando a maior estrela do cinema soviético, voltaria a trabalhar com Kalotozov em A Carta Que Não Se Enviou e seria duramente criticada pelo premier Kruschev, foi impedida de atuar em solo soviético até 1967. Quando Voam as Cegonhas foi o único filme da extinta URSS a ganhar uma Palma de Ouro em Cannes, mesmo impregnado de uma propaganda nacionalista, Kalotozov soube driblar sutilmente estas intempéries vermelhas e tocou a todos com sua arte, viria a se destacar novamente com excelente, Eu Sou Cuba, mas sua grande obra prima já estava sacramentada, com esta jóia em forma de imagens.
Um dos meus prediletos do Cinema Russo. Lembro de ter ficado impressionado quando vi. O texto me deu vontade de ver novamente.