David Lynch brinca com o espectador. Uma brincadeira de gente grande, que mexe com a mente e com os sentimentos. Em “A Cidade dos Sonhos” ele vai além naquilo que lhe é mais familiar e explora de forma acentuada suas características e seu talento.
Nossa memória é acostumada a preencher vácuos, por isso caímos nesses intervalos de lógica durante o filme. A começar por pistas reveladas pelo diretor logo no começo, quando duas pessoas aparecem dançando no mesmo quadro com roupas diferentes. Ou seja, a principio seriam vários casais dançando, quando na verdade é o mesmo casal com roupas diferentes. Isso já mostra as tramas entre o real e o sonho que vem pela frente. Em seguida uma câmera penetra lentamente em um travesseiro vermelho, como se estivesse entrando em um sonho.
Muitas interpretações e linhas de raciocínio são permitidas nesse filme tão plural. A primeira que nos é apresentada é a seguinte: Rita (Laura Harring) que está prestes a ser assassinada pelo motorista do carro no qual é passageira, é salva depois que um carro em alta velocidade colide com o seu na estrada Mulholland Drive, em Los Angeles. Mas ela fica sem memória e se esconde em uma casa onde Betty (Naomi Watts) vai morar para buscar uma carreira de atriz. Elas se conhecem e Betty tenta ajudar a nova amiga a descobrir sua identidade. Enquanto isso, o cineasta Adam Kesher (Justin Theroux), não aceita a ordem dos mafiosos Castigliane em dar um papel principal de seu filme a uma garota escolhida por eles. Por causa disso ele perde todo seu dinheiro, mas com a ajuda de um misterioso Cowboy resolve obedecer aos mafiosos e recupera a vida que tinha.
Depois disso há um corte em que tudo que já aconteceu parecerá um sonho. Muitos detalhes fazem a conexão do que seria o sonho e do que seria o real. Detalhes condensados e deslocados, objetos constantes também ajudam a embaralhar a trama.
O Cowboy e uma misteriosa caixinha azul são algumas constantes intrigantes. O restaurante e cinzeiros, canecas e um teatro chamado “Silêncio”, tudo parece inversamente ao que era, colocando em evidencia o embate entre o real e o irreal. No teatro “Silêncio” algo é revelado. Os artistas cantam e tocam, mas é tudo gravado. Em um momento bem marcante e emocionante do filme uma artista sobe ao palco cantando uma música forte e triste. Mas quando caí dramaticamente no chão, a voz continua e vemos que era tudo gravado, tudo uma ilusão. Isso nos conduz à diretriz do sonho. Como se revelasse que o que aconteceu até agora foi um sonho.
No sonho o nome de Betty é na verdade Rita. Ela mora em outra casa, é uma atriz fracassada e tem um amor não correspondido. O amor de Camila, que no sonho era Rita, agora é uma atriz de sucesso e mulher do diretor Adam Kesher. Nessa troca de nomes já vemos sinais de “deslocamento” de Freud.
Podemos assim encarar o filme como uma mistura entre o sonho e o real, um embate de dualidades e dividir o filme em sonho, primeira parte, e realidade, segunda parte. Na primeira parte Betty é feliz, sorri e tem uma vida alegre; no segundo é triste melancólica Rita e com certo rancor nos olhos. Rita na primeira parte aparece como uma mulher inocente e doce, totalmente diferente da arrogante e impiedosa Camila da segunda parte.
Outro aspecto interessante, é que no final do filme Betty (ou nesse caso Rita) entrega a foto de Rita (nesse caso Camila) e uma quantia em dinheiro para Joe (Mark Pellegrino) executar algum trabalho para ela. Em uma interpretação pode-se dizer que Joe assassinaria Camila eliminando todo o torpor de Betty pelo amor não correspondido. Assim toda a primeira parte do filme é um sonho de Betty (Rita na realidade). Em outra interpretação, Joe poderia até ser uma espécie de “vendedor de sonhos”, já que entrega uma chave azul para Betty como algum artefato do sonho. Chave que aparece também no sonho, com um formato diferente, e que abre a misteriosa caixa azul. E ela compraria a ilusão de ter Rita (Camila) como amante nos seus sonhos.
O filme confunde mais do que explica, deixa portas abertas e espalha enigmas e pistas durante quase duas horas e meia. Até porque não é um filme para ser compreendido; é para ser sentido no mais profundo e intrigante universo de suspense, amor e sonhos
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