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Críticas

Cineplayers

Um diretor completamente novo.

9,5
É uma prova de amor mostrar para alguém os seus defeitos visíveis quando ninguém tem coragem para tal, ou prova maior é proteger o objeto amado da violência ao seu redor? Estranho observar que o filme de Yorgos Lanthimos seja no fundo uma história sobre corações partidos, desamor e síndromes adquiridas, sem sucesso em perdê-las. O cineasta que há menos de 10 anos chocou o mundo com Kynodontas levou apenas mais 4 filmes para concluir seu plano de dominação global, se adaptando e reciclando muito mais que evoluindo - A Favorita provavelmente não trará admiração entre sua legião crescente de fãs, que esperam dele hoje a metralhadora giratória estética e verbal que o colocou na mira dos misantropos mais odiados do cinema hoje. Seu novo filme parece declarar não apenas seu plano concluído, como atestar sua maturidade estética e intelectual.

Há pelo menos 5 anos, Lanthimos declarava sua obsessão com o roteiro de Deborah Davis e Tony McNamara, ela estreante de fato e ele um roteirista de séries de TV de pouca (ou nenhuma) expressão. Assistir ao filme é entender essa fixação e dar razão a ele; de construção elaborada, com extrema riqueza de delineamento e com diálogos tão originais quanto incríveis, Lanthimos teve pra si apenas o trabalho de se moldar a esse material escrito, e a criatura híbrida que nasce desse experimento é um autor evoluído e impulsionado, que encontrou seu lugar de fala em meio a uma realidade tão diferente ao seu universo. Em 10 anos, ele foi de um provocador mordaz para um esteta rigoroso, abandonando os excessos estilísticos sem jamais perder a assinatura. Tudo o que fazia dele um autor interessado em radiografar o humano em situações extremas é posto a prova nesse rendez-vouz histórico.

A grande angular que o fotógrafo Robbie Ryan transforma em parceira no projeto é ela mesma uma parceira do diretor, quando ele escolhe salientar a neurose meticulosamente construída naquele cenário, dando amplitude ao campo de visão do espectador e permitindo uma investigação apurada sobre aquele universo onde só o palpável é real; tudo que respira, dissimula. Também na conta de Ryan e Lanthimos está a amplificação dos esforços de Stanley Kubrick e John Alcott para a iluminação de Barry Lyndon, uma realização de vigor intocável; aqui, fotógrafo e diretor voltam a criar mecanismos para fotografar a luz natural em ambiente de época, em procedimentos de resultados inomináveis e desde já exemplar na temporada. O filme consegue assim não apenas uma crueza e uma realidade estética, mas também um grau de beleza que raramente é pretendido em produções de larga escala.

No campo do alcance, o filme é muito bem sucedido porque toda sua maquinaria conversa entre si e promove essa reflexão a respeito de nobres valores devassados pelos mesmos, utilizados como moeda de trocas palacianas, que resumem muito bem tanto o raio de ação mais largo e de disposição geral quanto as decisões sentimentais e muito mundanas que arrastam os personagens sem exceção para um espiral de torpezas cometidas a granel. 

Tecnicamente e dramaturgicamente impecável, A Favorita tem um dos elencos mais afiados da temporada pra onde se olha. Dos coadjuvantes absolutos aos personagens com desenvolvimento central como os de Nicholas Hoult e Joe Alwyn, há brilhantismo em cada interpretação. Mas como já foi mais do que declamado, o filme é um tour de force do trio Olivia Colman, Rachel Weisz e Emma Stone. A primeira é a face da fragilidade na primeira parte, até aparentemente ascender em brilho e decisão; a segunda tem a interpretação de sua vida, equilibrando frieza e vilania; a terceira confirma a excepcional fase que sua carreira se encontra desde que foi lançada, uma curva ascendente interminável. Olivia e Rachel em particular estão arrebatadoras e movem o filme numa constante de qualidade que nunca se resume a seus desempenhos. Essa é uma das certezas ao sair da sessão do novo filme de Yorgos Lanthimos, saber que dessa vez ele foi até cada aspecto da produção e superlativou os méritos, transformando o que poderia ser mais um drama de época num quadro vivo de ressentimento travestido da mais cruel ironia.

Filme visto na Mostra de Cinema de São Paulo

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