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Críticas

Cineplayers

Guerra social sob a luz do luar.

7,5
Juntos ou separados, Juliana Rojas e Marco Dutra já se provaram, em longas e curtas; não precisam mais correr atrás de verdades ou de aprovações. Antes da comoção merecida em torno da revolução de gênero no mundo, que o Brasil está seguindo feliz, eles já apontavam nessa direção e faziam seus filmes que nem crítica social ao horror nosso de cada dia, híbridos cheios de múltiplos significados e funções e que trouxeram primeiro dentro dos curtas e caminhando até os longas uma perspectiva de sobrevivência na nossa cinematografia apenas nessa seara, mas com possibilidades de sair dessa zona de conforto. Trabalhando com um esquema de poucos e bons amigos, já conseguimos identificar assinaturas não apenas visuais como de escalação. Isso tudo, ao invés de engessar as produções, promove o contrário, já que eles tratam sempre de quebrar as formas.

O projeto As Boas Maneiras existe há alguns anos, e o primeiro teaser pôster, lançado antes de qualquer imagem filmada, confirmou a premissa ligada à licantropia que se aventava desde sempre. Uma vez mais, não interessa aos autores de Trabalhar Cansa apenas um lado do horror, e o horror deles engloba tantas possibilidades, reais ou fabulares, que a qualquer nova virada é bom ficar de olho se virá sangue ou um ataque social. Ou os dois. Lidando com o nosso passado escravagista como reflexo das relações que se construíram entre senhores e patrões, brancos e negros, dominados e dominantes, o painel de possibilidades que Marco e Juliana abre a partir de um núcleo bem fechado exemplifica como eles passam longe do lugar comum do gênero, e mesmo do original que se propõem por aí, indo eles numa construção aqui artificializada que casa com perfeição a proposta de repensar contos de fadas e suas origens.

Dessa vez, o olhar da dupla não é para a crise econômica que já estava galopando bem na época de seu primeiro longa juntos e que serviu de mote lá. Aqui a crise é moral e ancestral, e coloca Isabel Zuaa e Marjorie Estiano a princípio em lados opostos de uma mesma pirâmide social, a sinhazinha desprotegida que volta a precisar dos serviços de uma senzala moderna, porém tão retrógrada e absurda quanto completa. Aos poucos essa relação se desconstrói, assim como na segunda parte o efeito oposto será refeito, onde o jogo de espelhos reversos do filme irá se intensificando a cada nova passagem em cada capítulo. Sim, As Boas Maneiras se passa em dois momentos, que criam juntos uma aquarela onde fábula e realidade são pintadas juntas. Ainda que dessa fábula muito do real execrável seja mostrado e revivido, infelizmente.

O trabalho do fotógrafo Rui Poças é majestoso e inebriante, criando quase duas paletas de cores distintas para cada capítulo, onde cada elemento do trabalho cenográfico igualmente exemplar de Fernando Zuccolotto é realçado pela luz de sua fotografia, que transforma a primeira parte do filme em algo de lúdico e de colorido, em contraponto à segunda parte de cor mais realista. O trabalho das protagonistas é igualmente feliz, e ambas também se movimentam de formas diferentes de uma parte para outra, quando ambas se sobressaem mesmo na primeira, com riqueza de composição e química implacável. O elenco coadjuvante, que entra em cena na segunda metade, não segura tão bem quanto elas, e isso é visível no resultado final do conjunto de elenco, ainda que a maioria seja da trupe dos diretores e já tem passagem livre nos sets deles. A notar ainda na primeira parte a participação sempre estonteante de Gilda Nomacce, que não precisa de mais que 5 minutos pra mostrar sua extrema sensibilidade e talento.

Ao final (ou a partir da metade), a dúvida: porque dividir o filme em dois? Ainda que as metáforas sobre a alternância das regras entre os menos favorecidos na sociedade seja certeira, e ainda que o filme se encerre com um frame dos mais poderosos da atualidade, a impressão que se tem é que toda a história foi contada na parte inicial do filme, e a segunda ao invés de somente expandir as questões traz um viés diferente para a narrativa, que desce de maneira bem menos natural no que diz respeito às amarras do roteiro. Com o impacto diluído por reforçar sua mensagem, Marco e Juliana têm a seu favor sua primeira emblemática parte, que caso estivesse sozinha estaria tranquilamente entre os grandes filmes da década.

Visto no Festival do Rio 2017

Comentários (1)

Edgar Vinícius Oliveira | domingo, 26 de Agosto de 2018 - 22:03

Ótima crítica e filme muito bom. Concordo que a primeira parte é ótima e se fosse só ela com alguns minutinhos a mais seria uma obra prima.

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