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Críticas

Cineplayers

A verdade, de acordo com o cinema.

10,0
O Olhar de Cinema desse ano não forneceu apenas ao espectador uma homenagem aos cineastas Djibril Diop Mambéty e Jean Rouch, mas acima de tudo um intensivo para conhecer e captar a essência do que esses dois autores comunicaram. Assumo minhas deficiências anteriores ao festival com Rouch, mas saí dele com sede do cineasta e etnografo francês, que viveu anos no Níger como arquiteto e lá, fascinado pelos hábitos e principalmente pela população local, criou uma série de filmes e dispositivos fílmicos particulares, que permitiram não apenas que o seu nome fosse usado hoje como referência no cinema, como também moldasse o próprio cinema a partir de seus experimentos.

Crônica de um Verão se enquadra entre os títulos principais de sua carreira, talvez o mais estudado e referenciado. A resposta para tal está no próprio filme, que justifica tudo a respeito de Rouch e seus métodos. Ao lado e com a ajuda do sociólogo Edgar Morin (que acaba assinando a direção do longa junto com ele), o francês parte de uma pergunta muito simples - "você é feliz?" - para criar discussões e alternativas muito especiais sobre o momento que a França vivia em 1961, 7 anos antes dos acontecimentos de maio de 68, que já eram uma inquietação do povo ali. Ao mesmo tempo, Rouch não se furta em voltar a flertar com a inter-relação étnica que cerca sua filmografia, observando os diferentes olhares entre europeus e africanos em contexto tão direto, que se complexifica ao longo da projeção. 

A ideia dos autores ao propor tal pergunta era fazer um painel do estado de espírito da época, e a partir dele montar leituras mais profundas de personagens específicos. As pessoas passam a ser abordadas na rua por duas das personagens (uma delas, Nadine, estrela também A Pirâmide Humana) e se saem com tiradas cada vez mais reais e menos posadas, e a base da melancolia do tempo começa a ser feita. Após essas questões, o filme se debruça então nos seres individualizados, que vão forçar a pergunta rumo a um desdobramento filosófico muito imperceptível, onde cada um relata seu cotidiano, suas perdas e ganhos, e assim acabam por criar uma teia psicológica inerente à França dos anos 60, um caldeirão de inquietações e frustrações que não poderia realmente ter um prosseguimento tranquilo.

Dentro das possibilidades criadas, fica claro como o interesse pelo humano e as conexões que criamos são a matéria-prima do 'cinema verité' que Rouch cunhou (inclusive literalmente; a palavra aparece pela primeira vez em audiovisual aqui), e que tem como base não apenas descortinar as relações humanas, mas criar integração entre esse interesse e o fazer cinematográfico por excelência, em imagens tão bem pensadas quanto poderiam ser. Rouch não apenas tinha excelentes argumentos para seus longas, mas essencialmente conseguia revestir em suas análises critérios e motivações que apenas o cinema pode compreender. O momento em que Angelo, um francês empregado de uma fábrica da Renault, e Landry, africano também visto anteriormente em A Pirâmide Humana, se conhecem é uma das cenas que definem não apenas o filme, como também todo o processo de estudo gerado pelo mesmo, assim como o encontro com Marilou, mulher jovem de emocional instável que versa sobre sua própria desintegração emocional. Talvez sejam esses três personagens que movem o longa até sua reflexão final.

Hoje em dia é fácil observar obras de Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Sarah Polley e tantos outros e perceber de onde vieram essas questões que perpassam tais autores. Assim como a ideia do cinema verdade, Rouch definiria aqui um modelo muito próprio de realizar cinema e construir o máximo em reflexão com o aparentemente mais simples em realização. As sequências finais, onde eles levam seus personagens para acompanhar uma exibição particular do filme, e as conclusões entre ele e Morin, enquanto caminham em círculos, são daqueles momentos do cinema onde tudo vale a pena e faz sentido, onde cada discussão se faz válida e onde a sala escura justifica a paixão e a obsessão de tanta gente por aqueles momentos que nos prendem à experiência de filmar corpos e matérias, para projeta-los depois.

Filme visto no Olhar de Cinema de Curitiba

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