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Críticas

Cineplayers

Por trás das venezianas, um mostruário íntimo e familiar.

8,5

Enquanto muitos artistas separam, às vezes com todas as forças, suas criações das suas origens, André Novais Oliveira não apenas as abraça, mas também as transforma em matéria de cinema das mais originais. A começar pela escolha dos personagens do seu ótimo longa-metragem de estréia, todos integrantes da sua família (incluindo a si mesmo) em versões ficcionais, embora mantenham entre si os mesmos laços de parentesco e afetividade do mundo real.

Não há nenhum cabotinismo no seu auto-retrato na tela. Em vez disso, nota-se humildade, começando por fazer dos próprios pais os protagonistas de Ela Volta na Quinta. Maria José e Norberto, casados há décadas, são mostrados em momentos prosaicos, em que o rotineiro é representado com enlevo. A vida cotidiana pode revelar graças inesperadas, seja no trabalho de Norberto numa loja de conserto de geladeiras, nas tarefas domésticas de Maria José ou na rotina de seus filhos, André e Renato, com suas respectivas mulheres. Todos surgem de forma espontânea, longe da escola Fátima Toledo de exacerbação naturalista.

Há espaço para questionamentos sobre futuro profissional, mudanças de endereço, confirmação de relacionamentos e, principalmente, o descompasso entre Norberto e Maria José após tantos anos juntos. Todo esse painel afetivo mais parece a transposição audiovisual da dramaticidade sutil de algumas canções de Paulinho da Viola, uma delas comparecendo na trilha sonora em um momento à la Abbas Kiarostami durante o filme.

Vale apontar alguns momentos de alívio cômico, em especial um deles, por meio do uso bastante criativo de vídeos populares do YouTube. Quando há música, enquanto parte da diegese ou a trilhar momentos cruciais deste longa, é sempre a fim de reforçar a emotividade, nunca recaindo em exageros.

As conversas entre os personagens são fluidas a ponto de não sabermos onde termina a criação e onde começa o embasamento na realidade. E uma delas em especial, entre o diretor e sua mãe, resume primorosamente um provável propósito deste filme: realizar um tributo a uma família que, malgrado as dificuldades cotidianas e as divergências de rumo, respeita e apóia os sonhos dos seus integrantes. A cumplicidade é tanta que certas cenas conseguem o feito primoroso de simularem a nossa atenção durante longas conversas com pessoas queridas.

E é importante destacar o quanto Ela Volta na Quinta está impregnado de uma crítica social perceptível tanto nos anúncios de propaganda espalhados pelas ruas quanto pela apresentação de um meio urbano cujo crescimento seguiu qualquer curso além do planejamento. E embora não haja uma abordagem explícita da questão racial no Brasil, há um discurso equilibrado e seguro quanto à auto-afirmação do negro no cinema brasileiro. Contra estereótipos e desfeitas, tão comuns na televisão e no meio publicitário (dentre outros), nada mais apropriado do que uma naturalidade oriunda de muita reflexão e sensibilidade imagética.

Que este filme sinalize a afirmação de mais uma voz criativa do nosso cinema a provar que não há nada de batido em recorrer à família enquanto substrato artístico e que gentileza no trato com a câmera pode revelar até mesmo o indizível.

Comentários (1)

Seu Madruga | sexta-feira, 26 de Setembro de 2014 - 18:24

Bela crítica! Impossível não ficar interessado em vê-lo depois de lê-la.

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