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Críticas

Cineplayers

Espectros do (nosso) tempo.

8,0
O rio como mola propulsora do levar e do despedir, o início, o fim e o meio, todas as formas de movimento passam por ele. Los Silencios de Beatriz Seigner é um filme dependente das marés, dos afetos e da construção que se suspende na dor. O que nasce da dor? Que som se empreende quando você se devasta, internamente também? A história de Amparo começa na escuridão da noite e se encerra na mesma escuridão, ainda que a morte que sempre a espreitou ao final cante a sua própria existência. A existência da morte, taí... talvez seja sobre isso o filme de Beatriz. Sobre o abraço permanente que damos no desconhecido, na poesia como forma de apaziguamento, na força do tempo e na cura através da percepção, que nunca está no lugar e na hora que se espera. É o tempo, sempre ele, que move tudo.

O marido de Amparo desapareceu em meio a conflitos armados na Colômbia e ela vai viver com a tia na Ilha da Fantasia, região da zona tríplice que une Brasil, Peru e a própria Colômbia. A seguem Fábio e Nuria, seus dois filhos, que precisam cada um a seu jeito lidar com ausências e deslocamentos, com a impossibilidade de carinho num momento de transição, de lugar, de paisagem, uma mudança tanto externa quanto interna, que chacoalha a zona desconhecida do carinho. Tudo é de ordem prática: falta dinheiro, falta água potável, falta emprego, falta proximidade. E o que sobra? Sobra água do rio, sobra violência psicológica, sobra beleza lúdica, sobram sentimentos apartados e sendo absorvidos de maneira unitária. Até... o pai voltar.

Nessa narrativa flutuante do tempo distendido da maneira mais diegética possível, Beatriz tenta naturalizar a poesia com a qual esbarrou em Leticia, a cidade que margeia a Ilha. Um lugar banhado em mitos e mistérios que os moradores fizeram questão de manter, de profundo respeito com os seus mortos e com um entendimento da vida, que passeia ao largo da chegada de refugiados de conflitos civis. A diretora captura e absorve muito dos ritos que o próprio local trouxe pra ela e os expõem de maneira naturalizada e abrangente, capaz de tocar qualquer público e não deixar o estranhamento se transformar em barreira. Ele é um elemento, que o filme faz uso de maneira delicada e gradual, envolvendo seu desenrolar com o propósito imersivo mais adequado, inclusive no que o próprio tem de mais cinematográfico possível.

A fotografia de Sofia Oggioni é das mais complexas e refinadas da atualidade. Cabe a ela liberar ao espectador a aura crescente de "realismo" (cada vez mais fantástico?) sem afastar ou fatigar, e com sua luz conseguir avançar na construção narrativa que Beatriz conduz. Ao intercalar a luminosidade das tintas neon com a sobriedade do dia a dia, ainda assim conseguindo gradações de claro e escuro para dosar as cenas e os personagens, e ao bancar as movimentações decididas pela autora, Sofia cria ali imageticamente os universos paralelos que o roteiro já desenhou. Alinhado a montagem hipnótica de Renata Maria, Los Silencios cria pra si um lugar suspenso entre o sonho e o pesadelo, cuja intensidade é aumentada a cada nova camada que o filme apresenta.

Trabalhando nesse registro que caminha para a fábula rasgada pela realidade (e que talvez precise da mesma para contrabalançar sua dureza), é exemplar o trabalho de Beatriz ao intercalar Enrique Diaz e não-atores locais, e saindo de um lugar comum de criação para apontar um caminho fresco na tentativa/acerto ao filmar crianças, e sua espontaneidade nata. Nada parece fora do lugar, daquele habitat natural onde o filme se embrenha, mesmo que aquele não o seja para os protagonistas. O filme revela que, nos fim das contas, todos eles já chegaram à Ilha da Fantasia com seu desenrolar demarcado pelo destino previamente aos eventos mostrados na tela. O caminho os levou propositadamente até ali, como nas melhores histórias mitológicas.

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