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Críticas

Cineplayers

O que faz um grande museu? E como as pessoas se organizam para manter um grande museu em funcionamento? Essas são as duas perguntas que atravessam National Gallery.

9,0

São raros os diretores que conseguem a partir da repetição de um mesmo dispositivo de gravação continuar a produzir filmes relevantes. Frederick Wiseman, com seus mais de 80 anos de idade, é uma das felizes exceções. Impressiona a forma como seu último trabalho, National Gallery, se assemelha a outros dos seus documentários recentes – At Berkeley (2013) e La Danse (2009), para ficarmos nos exemplos mais óbvios. E impressiona ainda mais que repetindo a fórmula de gravação e montagem (longos documentários sem intervenção do diretor, sem entrevista, sem narração e que retratam o cotidiano de uma determinada instituição pela observação) mais uma vez o diretor faça um filme excepcional.

O que faz um grande museu? E como as pessoas se organizam para manter um grande museu em funcionamento? Essas são as duas perguntas que atravessam National Gallery. Wiseman passou 12 meses filmando o importante museu londrino que possui um dos maiores e mais relevantes acervos mundiais. Closes nas obras, visitas guiadas, as palestras, o setor de restauração, as aberturas de exposições, as reuniões dos diretores, a instalação das exposições, o trabalho dos guardas, os visitantes e tanto mais. É a combinação de todas essas ações que vemos na tela durante as quase 3 horas de duração do filme.

Mais do que um grande acervo, com pinturas que trazem 700 anos da história da arte a tiracolo, o filme de Wiseman nos mostra que para se fazer um grande museu é necessário estrutura e discurso simbólico. E que esses elementos estão intrinsecamente conectados. Do gigantesco prédio aos detalhes do entalhamento de uma moldura passando pela instalação das luzes para um novo quadro, a National Gallery é antes de tudo um local físico. O prédio está em um local privilegiado da cidade de Londres, e esse fato em si já faz com o que a diretoria do museu tenha que decidir quais posturas adotar em relação aos eventos da cidade que impactam a sua vizinhança. É uma dessas discussões que Wiseman nos mostra: uma corrida que envolve milhões de participantes terminará na frente do museu e gostaria de usar a sua fachada. Por um lado, é uma oportunidade evidente de publicidade. Por outro, o envolvimento direto do museu em um evento de caridade abriria o precedente para que muitas outras instituições solicitassem esse tipo parceria. Nesse momento, mais do que um prédio físico, a National Gallery se evidencia como uma instituição atravessada por discursos simbólicos e políticos que reafirmam o seu local de autoridade. Uma instituição atravessada por diversas relações de poder.

Logo no início do filme, vemos o diretor do museu em reunião com a responsável pelo setor de comunicação. Ela está preocupada em garantir que a National Gallery mantenha o gigantesco público que foi visitar a exposição dedicada a Leonardo da Vinci, ele insiste que é melhor ter uma grande oscilação de público do que abrir mão de um alto padrão curatorial. Entre tantos discursos, o museu é ainda uma galeria de elite (intelectual e financeira).

Um lugar em que uma das monitoras que leciona para um grupo de adolescentes de alguma escola (em sua maioria negros) ainda sente a necessidade de desajeitamente explicar/desculpar-se pelo fato do acervo do museu ter se formado maioritariamente a partir do dinheiro oriundo de doações de capitalistas ligados a escravidão. O grupo ambientalista Greenpeace não nos deixa esquecer que as parcerias e doações que mantém a instituição continuam questionáveis, ao realizar um protesto pendurando uma faixa a partir do terraço do museu contra a petroleira Shell (que realizava um evento dentro do museu).
Ainda assim, entre coquetéis de lançamento e elaboradas discussões acadêmicas, a National Gallery que nos mostra Wiseman também é uma instituição com diversas ações socioeducativas: aulas de desenho, visitas educativas para crianças e adolescentes, programas de inclusão para deficientes visuais, etc.

E, como os closes de Wiseman nos quadros não nos deixam esquecer, no meio disso tudo está a arte – o impressionante acervo da National Gallery. É nessa relação que mais percebemos as escolhas de olhar do diretor, que dedica grande parte do tempo das telas (e das discussões sobre estas) aos antigos grandes mestres da pintura. Certo, durante o um ano em que este filmou o museu aconteceram exposições dedicadas a Leonardo da Vinci, Turner e Ticiano. Mas toda a sessão de impressionistas vai aparecer apenas no final do filme em bloco. O diretor privilegia assim a pintura feita antes da existência da fotografia e as explicações dos monitores sobre os quadros como formas de construção narrativa (que antecedem o cinema).

Para além dos quadros como imagem e narrativa, o filme ainda traz a discussão desses como documento arqueológico/histórico. Acompanhamos em diversos momentos os trabalhos e discussões dos restauradores, onde esse dupla vocação das pinturas é evidenciada. Como o prédio do museu, cada quadro é antes de tudo um objeto material e fadado ao desgaste temporal desde o início da sua existência. Se as técnicas de restauração se sofisticaram (entre análises de laboratório para o menor dos pigmentos, as técnicas para remover verniz ou mesmo o raio-x que descobre as pinturas por detrás da pintura), o dilema sobre qual vocação deve ser mais importante permanece. As intervenções da restauração não reestabelecem o quadro como era no original mas possibilitam o alcance de uma imagem supostamente aproximada. Mas seria correto reconstruir um documento arqueológico? O discurso simbólico e político mais uma vez estão completamente imbricados na estrutura material da arte. Mas, mais do que um filme sobre essas questões abstratas, Wiseman filma as pessoas: como seres humanos em inúmeras ínfimas ações e conversas fazem um grande museu existir e funcionar. 

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