Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Auto conhecimento através da dor.

9,0
Nesse mesmo Olhar de Cinema, outro longa dirigido por uma cineasta jovem e oriental apareceu por aqui e ganhou o prêmio da crítica (Ansiosa Tradução, de Shireen Sono), mas Kamila Andini vai muitos passos à frente da sua colega filipina. Da Indonésia, Kamila segue a tradição de sua terra e realiza um longa fascinante embebido de sua cultura, seus rituais, sua visão local e sua ambiência que nunca se encerra no exotismo, mas sim encontra nele material para abranger sua narrativa. A partir do momento que centra seu roteiro em uma personagem infantil, a diretora acena com um mundo de possibilidades, que inclui permitir toda espécie de desdobramento por se tratar do lúdico que envolve o universo infantil.

O desenrolar da história de Tantri é muito particular daquela região do mundo de fato, mas o seu desabrochar é universal, e a partir desse lado tão comum a crianças de qualquer parte é que surge a ideia de unidade no olhar, trazendo aquelas peculiaridades para um lugar sensível. Se nem todos os elementos que formam o mosaico daquela narrativa são de fácil reconhecimento, porque muitos deles se situam em lugares da cultura, da religião e das lendas locais acerca do místico, do sagrado e do profano, é o emocional que acaba ligando as elipses narrativas em torno do que não se tem o conhecimento necessário. Através dessa conexão conseguimos acessar os caminhos para aquela sociedade que não reverbera no Ocidente em seus símbolos.

A protagonista Tantri está em momento familiar catártico. Seu irmão gêmeo Tantra foi acometido de algo desconhecido e, internado em um hospital, o contato entre eles é interrompido. Isso porque Tantri não tem qualquer trato com o ambiente, não se sente a vontade e decide não entrar no quarto para visitar a pessoa com a qual tem a maior ligação. A partir dessa imposição, a pequena começa a lembrar da sua relação com ele, refletir e reagir sobre os pais (e flexionar suas posições com eles) e também descobrir um lado outro de sua persona, acessando chaves oriundas de sua relação com a terra, os animais e os elementos básicos. O filme segue então um percurso de construção de linhas de roteiro afins da saturação ocidental, e subverte as relações entre os personagens com fins narrativos diversos ao que o cinema naturalmente propõe.

Através da conexão comum que o Oriente tem com animais e das muitas chaves de leitura que um roteiro pode ter, o longa exerce essa situação através de como Tantri se relaciona com oviparos, principalmente. Em seus delírios, Tantri e seu irmão se libertam da narrativa e constroem sua fábula voadora. Com Kamila, o filme vai formando sua narrativa em torno da preparação do luto e de como outras sociedades encaram o precipício que antecede a morte. Mais: como as crianças lidam com essa sensação de perda pela primeira vez e como encarar os processos que desencadeiam dentro de nós tão cedo. A metáfora do ovo que perde a gema é uma das cenas mais simbólicas do filme, quando Tantri se dá conta pela primeira vez que pode perder o que a completa.

Através de imagens de fotografia ímpar e com trilha-sonora sempre arrojada, a cineasta mostra um processo que é devassado pela dor ser quase naturalizado pela pureza da inocência e da natureza, que vão lavando tudo que é negativo e deixando apenas o singelo e único dessa experiência. Tantri observa o seu entorno e cresce com as relações, enquanto seu filme adquire cores cada vez mais abstratas e metaforizadas, sempre contrabalançando a ânsia da vida e a certeza da morte, num dos filmes mais instigantes e completos dessa edição do festival.

Comentários (0)

Faça login para comentar.