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Críticas

Cineplayers

Limites éticos e emocionais.

6,5
Maria, com gestos duros e objetivos, raspa a barba. Sacode o aparelho com firmeza, se olha num espelho mínimo, mas consegue terminar sua tarefa. Após a barba, Maria desfaz suas tranças e resolve usar seu cabelo solto. Nos primeiros minutos de Senhorita Maria, o que aprendemos? Vaidosa, falante, tímida, adepta da introspecção vez por outra, Maria é uma mulher com tantas particularidades quanto com semelhanças. Uma personalidade rica, a protagonista do filme de Ruben Mendoza mora em uma montanha e não pretende sair de lá. O filme trata de abrir lentamente o baú da personagem e vai criando os vínculos dela com a plateia, ao mesmo tempo que abre um debate sobre a forma de diretores lidar com retratados em documentários, e das responsabilidades que se assumem em decidir filmar alguém.

A personagem-título tem tantas questões quanto poderia, a começar pela identificação com o sexo feminino desde a infância. Logo decidiu se assumir como a Maria que conhecemos e enfrentar uma sociedade retrógrada por tão minúscula, que vai persegui-la durante toda sua vida, e justificar esse documentário, um dos mais doloridos retratos sobre a mais absoluta solidão. No caminho de contar sua história com uma espécie de distanciamento, Mendoza comete alguns deslizes éticos e deixa sua biografada a mercê da repetição de atos já enfrentados por ela e precisando lidar com revelações que o filme propõe e que não precisariam ser reveladas; revelando a homofobia e o agressivo estranhamento alheio, o diretor deixa o entorno expor Maria a declarações que a diminuem ainda mais.

A partir da observação da atitude e das falas dos entrevistados sobre essa frágil heroína, entra em campo uma análise mais objetiva em relação a postura da direção. Como se colocar a frente do que fazem pessoas que, por querer ou sem, vilipendiam um outro ser humano, mesmo que esse seja humanamente incapaz de retribuir a altura? De postura dependente em todos os aspectos, Maria é a imagem do pombo de asa quebrada. Sem formação escolar, moradora de uma montanha isolada, psicologicamente instável e de saúde debilitada, ainda assim todos a sua volta insistem em rebaixa-la. E vez por outra até riem disso. Como várias das coisas ditas são motivadas pelas entrevistas realizadas pelo diretor, porque não poupar a personagem de mais dor e humilhação emocional?

Incapaz de impedir tais ações, Mendoza se coloca numa situação complexa. Ao mesmo tempo em que dá voz a uma mulher literalmente silenciada, não percebeu o quão grave era sua abordagem e o tanto que mergulha Maria em velhos e novos traumas, se posicionando em antagonismo que ele mesmo criou. Realmente há um personagem impressionante às portas de ser revelado, mas qual o preço que se paga para revelar uma vida? E qual é a validade e as consequências do mesmo ato para quem é a maior interessada? O filme passa e ele deixa um rastro, que pode continuar configurando como reviravoltas constantes e não necessariamente positivas sempre.

Do ponto de vista cinematográfico, o filme consegue momentos, declarações e imagens de impacto, como em todas as cenas onde Maria está sozinha ou quando ela sai da montanha. Ao mesmo tempo tem ali uma estrutura muito confortável para um filme que deveria ter mais ênfase em seu lado negativo, e assim abrigar questões de ambiguidade sem humilhar ninguém. Tecnicamente não é um longa inventivo, com estrutura narrativa diferenciada, mas Maria é mesmo uma voz que precisa encontrar seus pares. No entanto a partir do momento que seu realizador não enxerga a humanidade por trás de seu próprio projeto, a validade do todo começa a ser questionada e os propósitos tão genuínos perdem o brilho diante do constrangimento.

Filme visto no 28º Cine Ceará

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