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Críticas

Cineplayers

Demme vai ao teatro.

8,5

Em O Casamento de Rachel, Jonathan Demme larga um certo classicismo estilístico para investir em um trabalho de câmera urgente, emergencial e pouco limpo, com o dispositivo operado em mãos para criar uma atmosfera quase documental, o que pouco lembrava trabalhos anteriores seus, como os marcos hollywoodianos dos anos 90 O Silêncio dos Inocentes e Filadélfia.

Cada vez mais afastado da norma geral da indústria de seu país após trabalhos pouco sucedidos como Sob o Domínio do Mal, a pegada mais intimista e menos popular e “de gênero” como sua filmografia anterior acabou desaguando em filmes como Solness, o Construtor, adaptação de uma das últimas obras de Henrik Ibsen, baseada em uma montagem do diretor de teatro americano André Gregory onde o personagem central, Halvard Solness, um arquiteto já idoso e com a saúde já frágil que oprime todos à sua volta já que um evento trágico – um incêndio que ruiu sua casa seguida da morte de seus dois filhos – o marcou para o resto da vida tanto no âmbito profissional, que o catapultou para uma vida bem-sucedida, quanto no pessoal, que o devastou para sempre, obrigando a carregar o fardo de ser culpado aos olhos da mulher.

Como filme tirado de uma peça teatral, as sequências são longas, os diálogos, densos, impactantes e excruciantes, as locações são poucas e como sempre acontece nesse caso, há o desafio de não fazer apenas teatro filmado mas utilizar elementos cinematográficos que possibilitem que a obra seja uma expressão que agregue os elementos já próprios do teatro – espaço, expressão de corpo e voz – com aqueles mais característicos no cinema – no caso, o tempo, a relação de imagem e som e a montagem.

Para tanto, Demme não tem medo de apostar em usar técnica de forma estética que dê o tom à atmosfera pretendida pela narrativa. Quando é visitado pela jovem Hilde Wangel, que conhecera anos antes, quando a mesma ainda era adolescente e flertara com ela, o diretor que até então havia utilizado as câmeras trepidantes que filmava seus personagens na janela inteira de 4:3 troca pela câmera mais estável, e da janela de maior abertura visual e menos ampliação de 16:9.  A própria maneira de se filmar influencia Demme, que enquanto mais independente, documental e errático pula eixos, corta sem continuidade, maltrata a imagem, para que a imagem no outro ato da história tenha variações de paletas de cor , utilização da profundidade de campo, continuidade de movimentação entre os cortes onde o tom de luz da manhã que Solness vê Hilde trazer é sempre forte e vibrante, em contraste com o leito onde deita, cruelmente real, onde o arquiteto definha após sentir uma explosão de vitalidade onde, por influência da jovem, quer libertar-se da culpa, vencer a vertigem terrível que sofre (o que leva a preferir construir casas a igrejas) e ser justo com aqueles que os rodeiam.

O ritmo das atuações é intenso, especialmente por Lisa Joyce, intérprete de Hilde. Numa atuação que fez Gregory e Demme admitirem ficar estupefatos, a atriz funciona como o motor de propulsão do filme, que o faz entrar em um ritmo furioso, “quebrando a casca” de Solness, fazendo admitir seus podres, seus medos e seus desejos. Sua presença magnética, sempre over-the-top, entre o riso e a lágrima se dá através desse segundo ato, quase uma expressão do inconsciente de Solness, em que elencada à categoria de “musa” pelo chauvinista obsessivo Solness, acaba sendo o motivo não de sua ruína, mas de sua redenção, já que seus diálogos com o protagonista revolvem exclusivamente ao redor de barreiras, limites e grilhões. Na categoria inicial de observadora, que muitas vezes observa a relação do protagonista com os outros, acaba tendo papel ativo e fundamental com os outros, em um caráter transformador que ambiciona transformar desvario em sincronia entre consciência e desejo.

Paradoxo que ronda o  filme, no meio do caminho entre classicismo e contemporaneidade, a ânsia por libertar-se contra as amarras morais e sociais mostra como o norueguês Ibsen ainda mantém a atualidade do seu drama socialmente descortinador, questionador da moral da época que prendia seus personagens tornando-os personas melancólicas soterradas pela culpa. O tom exagerado não se perdeu na atualização, onde equipamentos médicos modernos transportam Halvard para a sua morte utilizando do regime sonoro, pontuando a sua entrada e saída entre o mundo real e o grito de seu inconsciente. Uma vez que o que é contemporâneo anseia pela busca da identidade, quer romper com o que já fora imposto, Solness, O Construtor não faz questão de encaixar-se em nenhum regime de imagem, com Demme inventando uma forma nova, em diálogo consciente e curioso sobre o cinema do seu tempo, recorrendo a elementos justamente “protocinematográficos” para desaguar em seu cinema, costurando no final uma obra cujo interesse formal e histórico chega para tentar lançar-se em mares desconhecidos e assim descobrir novos rumos e possibilidades.

Visto durante o Festival do Rio 2014

Comentários (4)

Rodrigo Giulianno | domingo, 28 de Setembro de 2014 - 23:00

Quero ver esse...Ibsen é um dos meus dramaturgos favoritos...

Nilmar Souza | segunda-feira, 29 de Setembro de 2014 - 17:25

Caralho, confesso que nem tava sabendo desse filme até então .. o texto me deixou curioso. Demme com um bom material em mãos pode render coisa muito boa.

Caio Henrique | terça-feira, 30 de Setembro de 2014 - 11:41

Jonathan Demme...faz tempo que não ouço falar do hômi

Paolita | sábado, 04 de Outubro de 2014 - 02:42

O diretor Jonathan Demme fundindo a 5a Arte com a 7a Arte.
Uma filme sobre a decrepitude, a culpa, a a ambição, a melancolia e o questionamento moral.
Como disse o meu parceiro cinéfilo: não é um filme pro mundo de hoje. Cinema arte, cinema filosofia, cinema anticomercial.
Um cult.

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