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Críticas

Cineplayers

3 Macacos não é um programa fácil. Aqueles que resolverem enfrentá-lo, entretanto, certamente serão recompensados.

7,0

Dono de filmografia ainda curta, de apenas cinco longas-metragens e um curta, o diretor turco Nuri Bilge Ceylan ainda é desconhecido da grande maioria do público brasileiro. Apesar de seu nome ser presença constante nos principais festivais de cinema do mundo (seus últimos três filmes integraram a mostra competitiva em Cannes), somente Climas, lançado em seu país em 2006, aportou por aqui (estranhamente primeiro na TV a cabo e somente depois nas telas grandes) e ainda assim com dois anos de atraso. Mas a espera valeu a pena. A história aparentemente banal daquele casal em crise, com trama praticamente inexistente, era contada por meio de longos silêncios, planos estáticos e enquadramentos rigorosos e belissimamente fotografados.

Essas características ressurgem agora em 3 Macacos, último trabalho de Nuri Bilge Ceylan atrás das câmeras, e que, felizmente, chega às telas brasileiras bem mais rápido do suas obras anteriores. Se o resultado final fica um degrau abaixo do de Climas, ainda assim é uma oportunidade de ouro para o espectador brasileiro conhecer mais de perto a obra desse importante cineasta.

O título do filme parte do famoso provérbio dos três macacos: o primeiro não vê, o segundo não escuta, e o terceiro não fala. A imagem se presta para bem resumir a crise de uma família de classe baixa de Istambul, formada pelo patriarca Eyup (Yavuz Bingol), sua esposa Hacer (Hatice Aslan) e seu filho Ismail (Ahmet Rifat). Eyup tem uma profissão. Ele é motorista do político Servet (Ercan Kesal), homem de condição social bem mais abastada. Certa madrugada, Eyup recebe um telefonema. É seu patrão. Ele deseja vê-lo. Eyup vai ao seu encontro. Servet lhe confessa o que acabáramos de ver na sequência inicial do filme: naquela noite, após dormir ao volante, ele atropelara e matara um desconhecido numa estrada vazia. Servet está prestes a concorrer as eleições do seu País. Não pode correr o risco de se envolver em escândalos. Ele tem uma proposta a oferecer ao seu empregado. Eyup deve assumir a culpa pelo crime. Todos vão acreditar. Afinal, ele é seu motorista. Em troca, Servet lhe promete uma polpuda recompensa em dinheiro ao sair da cadeia, o que deve ocorrer após um ano, não mais do que isso. Colocando sobre a mesa os prós e contras, Eyup resolve aceitar a proposta, confessa o crime que não cometera, e vai preso por nove meses.

Durante esse período, Hacer e Ismail vão levando a vida. Ela trabalha como cozinheira num grande estabelecimento. Ele, sem um rumo ainda definido. Hacer quer arrumar um emprego para Ismail, algo que o mantenha afastado das más companhias com quem vem andando. Ismail não parece muito interessado. Entediado, ele passa a maior parte do tempo dormindo. Sua insatisfação não é com ninguém em particular. Ele decidiu estar de mal contra o mundo em geral e estamos conversados. Talvez a única coisa que o atraia seja a compra de um carro. Ele sugere que sua mãe peça a Servet um adiantamento do dinheiro prometido para dali a nove meses, quando seu pai for libertado.

Mesmo sem conhecer o patrão do seu marido, Hacer pede a ele a antecipação da recompensa. Servet passa a cortejá-la. Hacer deixa-se seduzir. Parece querer dizer que suas necessidades de mulher, ainda bela e desejável, não eram atendidas pelo marido. O filho desconfia do envolvimento de sua mãe com Servet. Ao constatar o ocorrido, é violento com ela. Ao visitar o pai na cadeia, contudo, esconde-lhe a verdade. O tempo passa e Eyup sai da prisão. Já nos primeiros contatos com Hacer, passa a desconfiar da infidelidade. A mulher parece estar apaixonada. Acostumada não falar sobre seus conflitos, a família não poderá , desta vez, jogá-lo para baixo do tapete.

3 Macacos traz as marcas características do cinema de Ceylan: os longos silêncios, os quadros estáticos, e a ambientação e a fotografia a serviço da psicologia dos personagens. A falta de comunicação dos integrantes da família é dada pelo uso constante do primeiríssimo plano, em que sentimentos são expressados não pela palavra mas sim pela troca de olhares, suor das faces, ou cabelos molhados. O aprisionamento dos personagens naquele mundo em que nada se fala, nada se vê e nada se escuta, é acentuado pela preocupação da câmera em bem diagramar o espaço interno do apartamento. Mesmo o terraço, único local em que a família poderia encontrar a paz e, num sentido metafórico, estar mais próximo a Deus (nesse aspecto, 3 Macacos lembra Pai e Filho, de Sokurov), é oprimido pelo achatamento trazido pelas nuvens carregadas e os raios e trovões que não param de cair sobre Istambul. A localização do prédio, no entanto, tão próximo ao mar, mas ao mesmo tempo rodeado por terrenos baldios, muros e uma linha de trem, parece sugerir uma perspectiva de que a felicidade plena está logo ali ao lado. Basta a família querer.

Por meio destes recursos, Ceylan desenvolve a psicologia de seus personagens. Os olhos tristes e cansados de Eyup indicam uma certa sabedoria de quem já viu muita coisa na vida. Ele aceita ir para a prisão porque tem a consciência de que sua família precisa do dinheiro que lhe é oferecido. Ao sair, desconfia que a mulher lhe foi infiel. Na primeira relação sexual entre o casal, é dominado por sentimentos contraditórios, um misto de ternura, afeição, selvageria e violência.

Sua relação com o filho também é tensa. As visitas que recebe na prisão, indicam um claro receio de Ismail em fitar seu pai diretamente nos olhos, de falar aquilo que pensa. Ao buscar Eyup na prisão, o rapaz não consegue lhe explicar o motivo pelo qual comprara o carro. A idéia era fazer uma surpresa, mas ele sabe que o pai ficará mais preocupado em tentar descobrir de onde veio o dinheiro para a compra do que feliz com sua iniciativa de arrumar um emprego. O filme não entra em detalhes, mas o filho parece se sentir culpado – e achar que o pai também o responsabiliza – pela morte por afogamento de seu irmão mais jovem. A imagem desse irmão, que vemos em sonhos e também numa foto pregada na parede da sala, nos remete a períodos anteriores, de maior cumplicidade entre aquela família, em que seus três macacos se falavam, se viam e se escutavam.

Hacer, por sua vez, descobre-se uma mulher ainda capaz de atrair os interesses do sexo oposto. Talvez acostumada a não expressar seus sentimentos (e o toque de seu celular é sinal disso), ela sente uma estranha libertação com a prisão voluntária do marido. De figura passiva dentro daquele núcleo familiar, ela percebe que tem a vida sob seu controle. Decide ir até o escritório de Servet e lhe pedir a antecipação do dinheiro. Aceita sua carona. No carro, ouve o desabafo de um homem que, se lhe parecia temível a princípio, revela-se um sujeito sensível, emotivo e que, ao contrário do Eyup, a trata como uma verdadeira confidente. O olhar misterioso de Hacer ao voltar para casa, sentada numa poltrona, brincando com os sapatos de salto alto, sugerem que ela, pela primeira vez, percebe que a relação entre um homem e uma mulher não precisa ser necessariamente voltada apenas à procriação. Seria de se estranhar que ela não se apaixonasse.

3 Macacos é o tipo de filme que exige do espectador uma participação mais ativa, preenchendo os espaços em branco da narrativa. O diretor evita filmar os chamados “grandes eventos” do roteiro. Assim, nada se vê do atropelamento cometido por Servet, logo no início da projeção. Também não o vemos dizendo sim ao pedido de Hacer. Da mesma forma, não é mostrada a relação adúltera dos dois. Muito menos o acidente fatal do segundo filho do casal. Para Ceylan não interessa a espetacularização desses episódios. Nem é necessário. Lá na frente, eles vão deixar suas marcas.  Nos rostos, nos olhares, nas rugas, e na profunda tristeza que cerca seus personagens.

O filme tem alguns defeitos aqui e ali, como a dependência um pouco excessiva na trama e a figura do filho morto (suas aparições lembram os filmes de terror japoneses). Contudo, eles perdem importância diante do rigor formal com que Ceylan arma seus planos e naquilo que o diretor tem a dizer sobre as relações sociais na Turquia, a instituição familiar e a incomunicabilidade entre as pessoas.

Em 2008, 3 Macacos rendeu a Ceylan o prêmio de melhor direção em Cannes (vencido pelo francês Entre os Muros da Escola). Em 2007, outro cineasta turco, Fatih Akin, já ganhara no mesmo festival o prêmio de melhor roteiro pelo belo Do Outro Lado. Essa dupla de diretores faz o mundo conhecer a cinematografia de um país que, até outro dia, não tinha lá grandes aspirações (talvez o grande êxito do cinema da Turquia foi a Palma de Ouro em 1982 com o drama Yol, e que, mesmo com a vitória, é praticamente desconhecido do grande público). Ainda que trabalhando em chaves diferentes (Ceylan mais voltado aos conflitos interpessoais, e Akin, na busca da identidade de um povo que faz fronteira com a vizinha Alemanha), eles representam, sem dúvida, duas novas vozes de qualidade no cinema contemporâneo.

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