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Críticas

Cineplayers

Contundência e delicadeza se mesclam nessa produção romena que levou o prêmio máximo do festival de Cannes do ano passado.

8,5

Palma de Ouro no último festival de Cannes, “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, do romeno Cristian Mungiu, deu o que falar. Primeiro, pelo prêmio a um filme de um país pequeno, do leste europeu, com aparente pouca tradição cinematográfica. Segundo, pelo tema polêmico, o aborto. E, terceiro, pela tão divulgada unanimidade do júri da edição de 2007 do festival em torno do vencedor de seu prêmio máximo – a Palma de Ouro. Resta saber se “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” apresenta as qualidades para tanto? Sem sombra de dúvidas, sim.

Assunto Delicado

A temática do aborto, embora extremamente complexa e delicada, já foi tratada anteriormente pelo cinema. “Um Assunto de Mulheres” (1988), do francês Claude Chabrol, e “O Segredo de Vera Drake” (2004), do inglês Mike Leigh, olham a questão da perspectiva de mulheres que ajudam outras mulheres a interromper gestações indesejadas em períodos históricos nos quais a atividade era vista como crime (o primeiro longa se passa na França ocupada, na II Grande Guerra, e o segundo, na Inglaterra do início da década de 50). Além disso, a ótica de ambos é a social, mais especificamente a da hipocrisia coletiva que envolveu e ainda envolve, em muitos países, o problema do aborto (no caso de “Um Assunto de Mulheres”, o roteiro baseia-se na história real de Marie-Louise Giraud, a última mulher a ser guilhotinada na França justamente pelo crime de aborto, numa época em que o governo colaboracionista entregou milhares de crianças e adultos para os campos de extermínio nazistas).

Em “4 Meses...” a perspectiva histórica também é preservada. A principal alteração, porém, refere-se aos protagonistas – desta vez, é a posição da mulher que passa pela experiência do aborto o foco da trama. Mungiu, também autor do roteiro, foi além: a protagonista não é, na verdade, a jovem estudante grávida do namorado, mas sim sua amiga, aquela que vai tomar a iniciativa de providenciar tudo para a operação de aborto; é através dela, como testemunha, que o espectador vivencia todas as angústias e dramas existenciais envolvidos no ato de interrupção de uma gravidez, sobretudo num contexto social de proibição.

Gabita e Otilia (Laura Vasiliu e Anamaria Marinca, respectivamente) dividem o quarto numa moradia estudantil universitária na Romênia do final da ditadura Ceausescu, em 1987. Gabita está grávida e quer abortar; Otilia irá ajudá-la, indo atrás do dinheiro, do quarto do hotel onde o procedimento ocorrerá, assim como do indivíduo a executar o serviço.

A câmera alterna momentos de planos fixos, como o da seqüência inicial, em que o espectador se vê dentro do dormitório de Gabita e Otilia, com outros de travelling, por intermédio dos quais acompanhamos Otilia em sua movimentação para ajudar a amiga. É essa relação pendular, oscilatória entre paralisia e movimento, a responsável pela tônica da narrativa. De um lado há a passiva Gabita, frágil, sem iniciativa; em contraposição, há Otilia, aquela que tenta se rebelar contra o imobilismo causado por um sistema de governo que tudo regula, proíbe e determina, deixando pouco ou nenhum espaço para a liberdade individual.

Vivendo no Mercado Negro

Mas qual a real possibilidade de livre-iniciativa quando se vive num regime no qual até um maço de cigarros Kent tem mais valor do que a moeda nacional? “4 Meses...” é pouco otimista nesse sentido. Acompanhamos as peregrinações de Otilia para conseguir a grana para o aborto de Gabita, para comprar o cigarro-moeda, a fim de usá-lo no suborno de recepcionistas de hotel, nas tensas negociações com Viarel (Vlad Ivanov), o homem contratado para fazer o aborto em Gabita, em seus compromissos com a família do namorado. Como se a vida privada na Romênia daqueles tempos houvesse sido transformado num imenso mercado negro, onde tudo tinha de ser negociado, cada gesto e atitude com um preço informal. Justamente o resultado oposto pretendido teoricamente por um sistema comunista: ao fazer de tudo para abolir o mercado da vida social, o socialismo real de inspiração soviética acabou por transferi-lo com virulência ainda mais selvagem para todas as esferas do quotidiano das pessoas.

Complementando o clima opressivo do filme, a fotografia lança mão da luz branca das lâmpadas de sódio, típicas das economias comunistas do leste europeu. É uma luz feia, que mata o tom das cores, luz de hospital, impessoal. A falta de trilha sonora também reforça o clima duro e frio; ouve-se apenas o barulho das coisas, como o som irritante produzido pelo mau contato das tão onipresentes lâmpadas de sódio.

Apesar dos recursos estéticos para construir uma representação crua, Mungiu consegue imprimir, simultaneamente, sutileza e lirismo à narrativa. Cabe à atuação fenomenal de Anamaria Marinca no papel de Otilia o principal mérito nesse sentido. A atriz é muito bem-sucedida em sua atuação física, construída com pausas e silêncios expressivos, levando ao espectador os dilemas internos dos vários conflitos trazidos pelos riscos e dificuldades da ajuda dada à amiga Gabita (a seqüência do jantar em família na casa do namorado de Otilia é emblemática, com qualidades de um “clássico-to-be” do cinema contemporâneo).

A mão de Mungiu também é responsável por essa leveza, ao apenas sugerir várias ações essenciais à narrativa deixando-as fora do quadro da câmera (há, contudo, um único deslize, uma cena desnecessária que, do meu ponto de vista, desrespeita o critério de sutileza predominante; o espectador atento saberá a qual delas estou me referindo).

A composição de um tal realismo poético termina por não deixar que o destino das duas moças acabe em tragédia. Pelo menos aparentemente nas imagens levadas à tela. Porque a tragédia de Gabita e Otilia, como uma doença contagiosa, é transmitida para o público. Saí do cinema incomodado. Talvez tenha sido essa a mesma reação do júri de Cannes/2007, de incômodo. De certa forma, coerente com a possível reação envolvendo outras premiações recentes, como as duas Palmas de Ouro recebidas pelos irmãos Dardenne: uma em 1999, com “Rosetta”, e a outra em 2005, com “A Criança”. “4 Meses...” demonstra que a representação naturalista ainda pode ser renovada.

(E, a propósito do cinema romeno, há alguns anos ele vem conquistando espaço no mercado mundial. Dois filmes romenos ganharam a competição em mostras paralelas no Festival de Cannes antes da Palma de Ouro de “4 Meses...”: em 2005, “A Morte do Senhor Lazarescu”, de Cristi Puiu, abocanhou a premiação do Un Certain Regard, enquanto “A Leste de Bucareste” levou em 2006 o Caméra D’Or. Isso sem falar em “Califórnia Dreamin’”, o vencedor da mostra Un Certain Regard do ano passado. Não é pouca coisa considerando-se o tamanho e o peso da economia romena no cenário internacional. Comprova também a concepção do cinema como forma de representação coletiva de questionamentos e modificações sociais).

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