Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Os conflitos adultos sob a ótica de uma adolescente que se descobre e amadurece.

8,0

À Deriva é o primeiro trabalho de Heitor Dhalia com imagens ensolaradas em espaços abertos, longe da claustrofobia de Lourenço – do conhecido O Cheiro do Ralo – e Nina (que dá nome ao primeiro longa-metragem do diretor). Apesar do enredo encabeçado pelas atribuladas experiências de uma adolescente não ser necessariamente uma novidade, fotografia, roteiro e interpretações dão os traços de sutileza que conquistam e nos fazem cúmplices dos dramas de Felipa (Laura Neiva).

Configurado em detalhes de figurino e direção de arte para marcar o início dos anos 1980 sem, no entanto parecer um calendário dos modismos da época, o filme se desenrola num clima de nostalgia fotográfica, como relembrar momentos do passado ao abrir a velha caixa de fotografias empoeirada. Algumas cenas são emblemáticas nesse sentido, com frames congelados para passar a idéia do momento fotografado, o que acontece com a galeria que se apresenta antes dos créditos finais. E é com essa delicadeza da memória que glamouriza os cenários e paisagens do que passou que Dhalia escreveu a história da adolescente que sai de férias com a família e volta pra casa bastante diferente.

Entre os muitos detalhes com os quais valeria a pena encher este texto, dedico um parágrafo ao responsável pelo figurino, Alexandre Herchcovitch. Estilista conhecido pela criatividade modernosa, talvez tenha pesado a mão apenas nos figurinos de Camille Belle, como se aquela personagem estrangeira fosse o presente que a produção lhe deu para ousar, como é seu costume. Dizem que ele elaborou uma mala de roupas para cada personagem, pautado na idéia férias-na-praia, quando somos obrigados a reinventar o visual com as peças que levamos para a temporada. Moldar os figurinos como extensão das características do personagem faz muita diferença, e nisso Herchcovitch foi muito bem.

Voltando à narrativa, vemos Felipa como testemunha dos erros no relacionamento de seus pais, acompanhando a separação deles como espectadora participante, ao mesmo tempo – e talvez por isso - que sai em busca de suas próprias descobertas afetivas e sexuais, e em alguma medida imita os adultos exatamente naquilo que não compreende, mas julga ser a atitude correta. Laura Neiva faz seu début nas telas pautando a interpretação em exercícios de resposta dramática, sem textos.

A utilização de três câmeras, segundo Débora Bloch (que interpreta a mãe), trouxe a naturalidade das respostas dos atores e o envolvimento quase familiar que nos é apresentado em cena. O espontâneo elenco, conduzidos por Bloch e pelo ator francês Vincent Cassel (interpretando o pai de Felipa), dá a intimidade necessária à família que um dia já foi feliz.

Chama a atenção a quantidade de vezes em que a história nos conduz à eminência de uma tragédia, a tensão sendo ainda mais instigada pelo piano de Antonio Pinto e sua trilha que lembra os arroubos e a delicadeza do mar. Ainda que sejamos colocados em picos de tensão, conseguimos manter a serenidade à espera do desfecho de uma história que poderia muito bem ser transformada num melodrama passional, assim, num piscar de olhos.

Dhalia nos poupa essa desfeita e até surpreende, mesmo que de maneira comedida. Se a trama - como dito no começo - não surpreende, fica ao final a impressão de história bem contada, que alimenta e satisfaz o interesse e o olhar do espectador comum. E justamente por ser uma história costumeira, é fácil identificar-se com algum dos personagens, ou até com mais de um deles.

Entre as atuações, destacar alguma é até deselegante, pois os atores com mais experiência - Cassel e Bloch - somam pontos a seus já conhecidos currículos enquanto os novatos se saem bem. Camille Belle (pode até parecer birra) é quem destoa, principalmente nas cenas em que apenas aparece, sem ter falas, e lembra uma modelo esperando o clique da foto. Destoa porque foge ao esquema de naturalidade que as outras interpretações do filme propõem.

Heitor Dhalia parece caminhar para um futuro de boas histórias a serem contadas, já que conseguiu desvencilhar-se da imagem de um diretor de filmes de nicho, estranhos, obscuros, surreais, abrindo espaço para um narrativa mais leve. De final, deixo a dica de que a história de Felipa merece ser vista porque foi contada sob um universo construído só pra ela.

Comentários (0)

Faça login para comentar.