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Críticas

Cineplayers

Uma versão não-misantropa de Onde os Fracos Não Têm Vez.

8,0
Praticamente todos que assistiram A Qualquer Custo fazem questão de comentar uma coisa em especial: o quão econômico é o filme de David Mackenzie. Trata-se de uma versão, podemos dizer, não-misantropa de Onde os Fracos Não Têm Vez. Aqui, a alma do filme são os personagens. Tanto aqueles que passam rapidamente pela história, com pequenas pontas e poucas falas, mas principalmente os protagonistas, Toby, Tanner e Hammilton.

Uma estável panorâmica segue Elsie até a entrada do Texas Midlands Bank, onde Toby e Tenner, dois irmãos, procederão com um assalto. A ideia é que os dois percorram algumas cidades do interior do Texas a afim de levantar dinheiro o bastante para quitar a dívida bancária que havia colocado o terreno da família como colateral. Importante observar que a dívida foi feita para pagar os custos de saúde da mãe dos irmãos, que sofria de câncer. Com o falecimento da mãe, Toby arquiteta o tal plano para que ele possa deixar alguma herança para seus filhos.

O filme está situado em algum ponto entre um filme de estrada e um filme de assalto a bancos, mas ao mesmo tempo completamente engolfado ao gênero faroeste. Ser um faroeste muitas vezes significa comentar de alguma maneira os Estados Unidos da América. Nesse caso, o filme é profundamente carregado de uma mensagem essencialmente anticapitalista - os valores da família e da tradição são postos em espectros opostos aos do progresso e do dinheiro.

Numa lógica western, o vilão está aqui claramente representado pelos bancos, mais especificamente por esse banco ínfimo que é o Texas Midlands. As agências em cidades menores são como que capangas de um brutamontes que deverá, no final, também ser derrotado. O policial Parker diz, de maneira sumária, o que o filme oferece em termos discursivos: quando compara a colonização dos brancos do território indígena com a "colonização" dos bancos do labor e das propriedades dos mesmos brancos, no mesmo território, nos dias de hoje.

O filme seria muito pouco se houvesse apenas o discurso, obviamente. O que A Qualquer Custo tem a oferecer de melhor é o desenrolar dos momentos em que Toby e Tanner compartilham a tela. Se por um lado eles demonstram um certo senso de camaradagem, onde a cumplicidade do passado se mistura com a do presente (criminosa, por sinal, pois estão assaltando bancos) por outro eles não poderiam ser mais distintos. Toby é o genérico cowboy, humilde, centrado e inteligente. É dele o plano de quitar a dívida com o Midlands usando o dinheiro roubado do próprio banco. Tanner, por sua vez, é um homem de ação, impetuoso e inconsequente. Curiosamente, em momentos oportunos da história, as personalidades meio que se entrelaçam: como quando Toby veementemente agride o metaleiro que apontava a arma para o irmão, enquanto Tanner procurava resolver a situação por vias mais pacíficas.

O que liga as duas personalidades, enfim, é o sangue que partilham, e o passado que ambos acabaram de deixar para trás. A presença-fantasma de personagens como a mãe, o pai ou a família de Toby interage com os irmãos, dando níveis mais profundos à história. O abuso do pai, o ressentimento da mãe, o abandono - questões mencionadas rapidamente nos diálogos, mas que dão a dimensão exata do espírito que ambos carregam.

Há ainda o policial Hammilton, que persegue Toby e Tanner enquanto eles assaltam os bancos. Hammilton está prestes a se aposentar e observa o desenrolar dos acontecimentos com certa ansiedade (ou poderíamos dizer melancolia), por estar vivendo seus últimos dias. A presença de Hammilton me remete a Pistoleiros do Entardecer (Sam Peckinpah, 1962), filme cujo herói é um velho cowboy (Steve Judd, interpretado por Joel McCrea).

Hammilton e os cowboys envelhecidos de Pistoleiros do Entardecer passam por seus respectivos filmes destilando anedotas de sabedoria e desprezo descomunal pelas atitudes dos mais jovens, num óbvio reflexo da rejeição que sentem por si próprios, enquanto homens que já passaram do seu auge. Tais personagens ocupam, nos filmes, um caráter altamente simbólico: são a própria manifestação do gênero dos mesmos - o neowestern.

O filme de Peckinpah já é um neowestern, ou algum protótipo do gênero, pois subverte as estruturas do faroeste clássico para comentar alguma coisa a respeito delas. A Qualquer Custo, com suas ambientações áridas e remotas, também nos remete ao gênero, indo mais a fundo com o objetivo de comentar uma condição atual da América em contraste com uma outra, de mais de cem anos atrás. Como mencionei anteriormente, a lógica discursiva é comentar como o agiotismo dos bancos (ou, enfim, os bancos por si só, com os juros abusivos, as taxas exorbitantes etc.) exerce uma espécie de colonização do trabalho e da terra da classe média/baixa da América branca, ironicamente a mesma que colonizou o trabalho e a terra dos índios durante as jornadas para o oeste.

Por fim, dá para enxergar como a abordagem econômica de Mackenzie se expressa por todo o filme, do início desenfreado, mas que rapidamente nos contextualiza do peso dramático da história que vai se desenrolar, ao desenvolvimento cadenciado dos acontecimentos. Mas o terceiro ato é especialmente eficaz em ostentar essa economia. As ações são divididas em dois eixos paralelos, e então repartida em três eixos paralelos, para depois tornarem-se dois novamente.

Há uma perseguição de carros, um tiroteio fatalmente trágico nas planícies (que parece literalmente copiado de Seu Último Refúgio, de Raoul Walsh) e três distintas redenções, cada qual exercendo certa interferência negativa sobre a outra, o que estica as tensões do filme, colocando as possibilidades de identificação/encantamento com personagens em níveis emocionalmente complicados e por isso mesmo preciosos. 

Embora num primeiro olhar A Qualquer Custo possa parecer discursivamente carregado demais, é na força de personagens bem desenvolvidos que o filme aposta. Personagens profundamente feridos por suas heranças morais e que se veem obrigados a fazer escolhas para se libertarem de toda hereditariedade. E então se veem fadados a lidarem com as consequências dessas escolhas, pelo tempo em que estiverem com os pés sobre a terra. Custe o que custar.

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