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Críticas

Cineplayers

A lacuna como pretexto.

7,5
Diz-se de Hollywood que esta solidificou um estatuto para a ficção cinematográfica – não necessariamente deu à luz, posto que as tarefas de rastrear partidas, pontos de origem, dificilmente passariam da titulação, e isto não vem ao caso; mas o perpetuou, tornou-o marca de venda, instaurou sua padronização, fez com que isso se tornasse um estatuto de fato, merecesse tal registro. Mas o que é este “isso”? De que estatuto se fala? Um tempo médio a partir do qual toda obra deveria durar, a passagem de uma régua que não só viria a temporalizar o curta, o média e o longa metragem, como fazer dessa mesma duração um estilo dentro do qual toda narrativa precisaria se adequar? Uma lógica do herói, um esculpir das jornadas para qual toda obra fincaria tipos de personagens específicos (um par romântico, um Sancho Pança ajudante, um vilão, etc.)? Certa expectativa de adequação das narrativas ao público, um cerco fechado fora do qual não haveria possibilidade de trama, porque tudo precisa ser pensado em termos de responsividade espectatorial? Decerto todos os aspectos contam, ainda que às suas variâncias tenhamos criado considerável elasticidade.

Mas há possivelmente um aspecto a que o cinema (desde que se entende por tal, e falando em termos práticos, ou seja, uma “totalidade” aspeada) nunca pôde fugir, este que é, a bem dizer, típico a toda arte que se baseia na ficção, mas que a sétima das artes engoliu e nele se alicerça, ainda que não nos apercebamos sempre. Mas não apenas ali se sustenta: precisa dele como a pintura da cor, a fotografia da luz, a escrita da palavra; tornou-o sua potência mais básica para funcionamento, tão essencial que ele – o aspecto – logo se invisibilizou, fugiu para a retaguarda da nutrição simples e que só se mostra como lampejo. Sobrevive, enfim, nele, dele: chamarei-o de lacunaridade. 

E porque À Sombra de Duas Mulheres (2015) veio a se tornar, nas mãos de Garrel, uma das contemporaneidades mais palpáveis do que esse aspecto é, tomo-o como exemplo: como pode o sentimento de um homem diante de duas mulheres, sua esposa e sua amante, resumir-se a pouco mais que sessenta minutos? Na cena em que Pierre ajuda Elisabeth a carregar os rolos de filme até o veículo, até aquela em que ele adentra seu apartamento e ambos fazem amor, só nesta simples passagem, que supomos ter acontecido num mesmo dia, não teria se escorrido mais que uma hora? Ora, isto é óbvio, mas ainda não é aí que quero chegar: é na suposição. Porque antes que possamos supor, há um contrato invisível: o que nos diz que tudo aquilo não passará de uma mentira, mas que, para vivê-lo, é preciso acreditar, e acreditar infere aceitar as lacunas de uma vida – aquelas de que a sustentação (crença) depende.

Composto essencialmente de elipses, de passagens de tempo denotadas, de dias que parecem segundos, de horas que podiam muito bem ser dias – tudo entre um corte e outro -, há, para além do tempo, a complexificação absurda, tão incompreensível que se torna na verdade mais que compreensível, de certo trabalho com sentimentos. O ciúme febril de Pierre, a autoimolação de Manon, a inferioridade sentida (e quase palpável) de Elisabeth, todos logo seguidos e misturados a arrependimentos, injustiças, culpas, incompreensões, paradoxos interiores: como poderia o cinema expressá-los senão através da fiadura do tempo? Nele, nas suas fluências maquinadas e passagens orquestradas, conceber uma farsa através de corpos que sentem, mas cuja motricidade, cujo sentido só existe na passagem. Garrel parece dizer-nos o tempo inteiro que não há outro sentido para o cinema que não perpasse o elã vital do “agora” que virará “agora” de novo, mais na frente, depois que aquilo passar: mas diferente em qualidade. Pierre não é o mesmo Pierre que se iniciou na abertura que a luz do projetor promove: sua mutabilidade lhe é fundamental. “Imagem em movimento” volta para reiterar um de seus sentidos mais puros.

Curioso pensar: aos mais básicos dos cineastas, àqueles que o próprio nome “Cinema” nos faz remeter, parece sempre haver certo apreço ao preenchimento daquele a quem entregam o olhar: ao espectador cabe a única tarefa de completar tais lacunas, sentir a vida cheia de brechas que se desvela e emprestar-lhe um sentido que não existe sem o olho e a imaginação. Quando Manon desabafa, mão sobre a do amado, que está cansada de sair sozinha, não é preciso que tenhamos visto seu cansaço, seus acessos de fúria, suas tentativas, a frieza e rejeição de Pierre: basta-nos aceitar-lhes como estão, com o tempo bem costurado impregnando a fluência de credibilidade. 

Arrisco um palpite, porque penso ter um significado maior o preto e o branco tão pulsantes da fotografia, e a texturização de Garrel pode muito bem vir a ser complemento indispensável de suas maneiras lacunares para tratar da teia de sentimentos: quando somos expostos ao profundo do travesseiro alvo de Elisabeth, onde antes jazia a cabeça do amante, quando o vestido escuro de Manon nos atinge com um escuro que só o luto (da relação que tiveram?) possui, há por trás do aprofundamento estético a sensação de que ao preto e branco só pode restar um esvaziamento positivo: há tão pouco para se ver nas imagens, e ao mesmo tempo esse ínfimo que resta é tão perfurante, vivo, que a atenção não se permite outra tarefa que não seja a da contemplação pura e enganosa, por trás da qual a lacunaridade se exibe: sentir a passagem quase indiscernível do ciúme ao desespero, da ternura à rejeição, da vazio à necessidade de um outro. 

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