A gostosura dos vários corpos, farsamente estraçalhados ou não
É uma tergiversação carnavalescamente estupidificante acerca da velhice e do quanto somos compelidos buscar um ideal inexistente de perfeição. O material aqui tem essa prerrogativa abarrotada de referências (o cinema está muito mais mencionioso nos últimos tempos ou estamos mais atentos? Ou porra nenhuma, tá do mesmo jeito?), que vão de O Iluminado (Shining, The, 1980), A Mosca (The Fly, 1986), entre outros vários trabalhos. Na verdade, é uma caralhada muito proposital e decidida no que quer acertar, e usa destas alusões a obras anteriores seja para se divertir ou homenagear. Claramente aproveitando disso para justificar os usos próprios de ideias alheias. E tome body horror.
Demi Moore é Elizabeth Sparkle. Mulher de meia idade que vê seu sucesso como apresentadora ser medido por sua beleza. Ora, nada mais óbvio e esperto do que escolhê-la para esse papel, afinal ela mesma fora considerada por boa parte da carreira como um par de seios, bunda e um rosto lindo ambulantes. Fora algumas exceções obviamente [Ridley Scott trabalhou com ela de maneira mais hardcore em Até o Limite da Honra (G.I. Jane, 1997)], ela fora bem usada nesse estereótipo da gostosona e conforme a idade avançava, as oportunidades começariam a rarear. Por isso é tão sagaz a escolha dela que se desnuda nesse filme (com apoio de uma maquiagem que dobre a aposta). A apreciação aqui é em formato de farra/farsa/sátira. Não há compromisso com grandes verossimilhanças diegeticamente tradicionais (como a criatura Sue aprendeu a fazer um fundo falso de alvenaria?), mesmo que a fita se venda com um formato de propaganda de margarina. Serve como veículo para a atriz se impor com uma interpretação que seja um comentário acerca de sua própria experiência, e em como ela deveria reagir ao que a circunda. Nesse esquema funciona Margaret Qualley como Sue, que age como uma espécie de ressurgimento de uma juventude perdida, tendo como idiossincrasia o cinismo e escrotismo que um jovem possa ter com outras gerações. Hiperbolicamente. O que lembra aleatoriamente uma curta cena do filme O Sexto Dia (6th Day, The, 2000), com o Arnold Schwarzenegger, onde Tony Goldwyn incorporado como um clone de Michael Drucker, se exime dalguma merda que seu outro clone anterior fizera, para assim culpabilizar o antigo, fora o fato de assim que o mesmo surge já nem espera o anterior morrer para tirar-lhe as roupas. Nova geração chegou. O passado que fique pra trás. Citação aleatória feita, vamos adiante. É a essa troca de gerações que a obra se debruça como a intenção de evocar a passagem do tempo através da destruição da carne (A Mosca (The Fly, 1986) no talo como grande menção). É o culto ao corpo que a sociedade moderna da vez assim acha gostoso e provido de muito desejo. Nisso a necessidade de mostrar ambas nuas completamente serve como um óbvio quod erat demonstrandum, onde o espectador é provocado a comparar os corpos e tecer, mesmo que de forma substancialmente subconsciente, qual corpo possa preferir. É uma provocação esperta.
Dominando determinados cenários. Sorrisos exagerados. Ultra closes. O tesão pelo corpo. Pela carne. Bunda e peito. Peito e bunda. O verdadeiro filme da Barbie. Parte filmada que estampa Sue com o citado visual de comercial anos 80. Parte da Elizabeth é depressão e dor. O caos, cara dela tremida. A forma como as mulheres são tratadas por grandes corporações e como o senso comum do que é socialmente estabelecido lida com elas. O público é compelido a gostar daquilo a depender do quanto a propaganda massifica e esmaga por sobre suas cabeças, principalmente se os alvos forem pessoas cansadas de suas condições e busquem somente uma válvula de escape dalgum programa qualquer. Não há tempo para análises ou transformações de preferências. Vamos com a magrinha nova branca/rosada gostosinha da vez. Novas e velhas. Uma câmera passeando pelos corpos. Tesão. Poder. Nova casca? New shell. O desastre da vaidade e Demi mostrada sem ela, a perda dessa vaidade à força, não só pelo desejo, mas pela demonstração de finitude de um determinado corpo. Popularidade e solidão. O tempo. Só farra e esculhambação pra uma. Só depressão e comida para a outra. A vaidade tomando de conta. Sue saíra de dentro de Liz, e agora a suga. Maquiagem corroborando a exorbitância proposta na narrativa, cada vez mais, dando ênfase ao encerramento imbecilmente abusivo e grosseiro – se comparado ao que havia até ali. O novo a sobrepujar o velho. Planos tétricos. Aplicação das cores. Laranja. Planos seguindo Demi em desespero. Cores não usuais. Seboseira. A carne. Os fluidos. O preparo. A batida. As costas sendo muito mostradas. Elementos transpostos calmamente. Cores fortes nos cenários. Muito laranja. Muito Branco. Rosa. Sue. A condição dos corpos é refletida na decupagem e nas escolhas de cores [enquanto ainda existe sob a égide das homenagens como no banheiro vermelho em O Iluminado (Shining, The, 1980), o clima tétrico de esquisitices é proveniente também dessa citação]. Elizabeth é oferecida cada vez mais como uma monstruosidade. Uma criatura em metamorfose agora proposta com asco, e com capuz a amarelo e luvas, como se fosse uma assassina serial de um giallo italiano. E temos o overacting de várias maneiras no elenco. Com distorções dos corpos a fomentar isto, como nos closes e em lentes grandes angulares expondo a deformidade das figuras, como ocorre com o chefe Dennis Quaid. Todos são esquisitos e foras de propósito. Irreais. Mas a intenção é jogar com isso. Com o absurdo que se estabeleça uma estratégia de interlocução através de uma farsa como crítica. Isto abre para o escopo da exageração. E que seja bem-vindo.
O seu finalizar triplica a aposta. É o descomedimento final de personagens desesperadas agora unidas pela desgraça. O desmantelo dos corpos como uma união tanto simbólica quanto sebosa num formato de criatura de um O Enigma do Outro Mundo (Thing, The, 1982), que se monta e desmonta querendo ser pelo menos uma cópia do que antes havia sido. Tudo pela alegoria. Mundo falso. Alopramento de sangue. A gororoba final inclusive me fora salutar por me fazer acreditar que haviam ainda mais duas referências embutidas. O intestino zumbi esfomeado de Fome Animal (Braindead, 1992) e um derretimento visceral final de O Incrível Homem que Derreteu (Incredible Melting Man, The, 1977). A aplicabilidade destas fitas como elementos a perambular na obra mostra que a diretora queria explorar a acepção da perplexidade – via seboseira – do quanto somos compelidos ao controle de nossas carnes. E sem esconderijos. E escolhe este abuso para se comunicar. Como uma marreta nas mãos de um adolescente raivoso. O que antes era um exacerbo de corpos apetitosos, agora é o dativus finalis destes. A diretora Coralie Fargeat escolhe fartamente este caminho cronológico disposto vagarosamente nas camadas destrutivas em metamorfose, enquanto persegue o exagero de sua diegese para comunicar suas ideias de apelos corporais e depressão. Inclusive sendo mulher que é acaba por se blindar de parte de uma pangarelice que a possa acusar de machismo com a exibição do corpo feminino simplesmente por ser uma diretora fêmea em questão, mas é isto que ela quer criticar, as formas de como a objetificação feminina ao mesmo tempo que explora os corpos em exposição, assim como ajuda a destroçar os não mais exibidos.
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