Daniel Pentecoste já foi uma estrela em ascensão. Aos cinco anos, seu carisma de púlpito o transformou em pregador mirim, com direito a vídeos caseiros, aparições em igrejas pelo Brasil e uma certeza infantil de que estava onde deveria estar. É com essa montagem — entre registros públicos e íntimos — que Miguel Antunes Ramos abre A Voz de Deus, entregando ao espectador uma espécie de origem messiânica que não tarda a ruir. Aos 16 anos, Daniel já não ocupa o mesmo espaço. Resta a ele uma nostalgia incômoda, onde o orgulho esbarra em vergonha. E nessa linha do tempo, entre o declínio da fama e a ascensão de um novo nome, João Vitor Ota, o país que se vê no entorno também se transforma.
Há algo de profundamente cinematográfico na forma como Antunes Ramos enxerga seus personagens. Não há aqui qualquer tentativa de correção ou distanciamento: a câmera se entranha. Em vez de julgar, observa. Em vez de acusar, compartilha o espaço. Isso não torna o olhar neutro — longe disso —, mas desloca o filme para uma posição de escuta radical, interessada em apreender o gesto, a hesitação, o silêncio. É assim que A Voz de Deus transforma o universo dos pregadores mirins, potencialmente insuportável para quem olha de fora, em um palco para dilemas internos, tensões familiares e angústias que não cabem nas frases prontas do discurso religioso.
Talvez o aspecto mais contundente do filme esteja nessa recusa em ilustrar teses. A ascensão da extrema-direita, o entrelaçamento do bolsonarismo com o cristianismo neopentecostal, a entrada do evangelismo no centro da política nacional — tudo isso está no filme. Mas não como plano de fundo. Está encarnado nas relações. Quando Daniel se percebe isolado diante do fervor de seu pai pela nova ordem evangélica bolsonarista, o que se vê não é apenas um embate geracional ou ideológico, mas a perda concreta de um espaço de afeto. São nesses momentos que Antunes Ramos permite que o filme atravesse a superfície e atinja o que há de mais humano e, portanto, mais contraditório, em seus personagens.
A decisão de fazer de João Vitor uma espécie de herdeiro simbólico de Daniel, num momento central em que ambos se encontram brevemente, não é apenas uma troca narrativa engenhosa. É também uma forma de mapear o que mudou — e o que permanece — nesse meio tempo. O que era fervor, agora é marketing. O que era palco improvisado, agora é estúdio caseiro com enquadramento pensado para o Instagram. O que era pastor-mirim, agora é influencer da fé. E mesmo assim, a essência permanece: a busca por pertencimento, por propósito, por escuta.
A Voz de Deus se impõe como um documento delicado e feroz, ao mesmo tempo. Não se esconde da complexidade que retrata. E, sobretudo, não reduz o evangélico a um estereótipo, como tanto do audiovisual brasileiro — em especial o de viés progressista — insiste em fazer. Miguel Antunes Ramos entende que o cinema é também um lugar de fé: na imagem, na escuta, no outro. Ao invés de condenar, ele filma. E ao filmar, humaniza.
Mais do que um dos grandes filmes do ano, A Voz de Deus é um gesto de abertura rara no nosso cinema — uma obra que reconhece a urgência de olhar para dentro sem medo de se contaminar, e que transforma essa contaminação em matéria de reflexão.
Filme assistido no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
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