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Críticas

Cineplayers

Don Quixote de Los Angeles.

9,0

O rumo da sociedade se apoia em mediadores dos fatos para construir sentido e determinar a Historia, e entre diversos mediadores há o jornalismo. Eternos dilemas morais permeiam a profissão, sendo o maior deles a questão da parcialidade, do jornalista enquanto testemunha ocular mas invisível dos fatos. No contexto contemporâneo, quando a tecnologia funciona como catalisador da velocidade dos acontecimentos, o problema do indivíduo em lidar com essa quantidade de informações altera a forma de interpretar os fatos, e com isso um veículo como o jornalismo entra em questão. Filmes recentes, como o insípido Homens, Mulheres & Filhos, tentam trazer respostas para as interações humanas no mundo do hoje, e O Abutre levanta perguntas ao partir de uma análise dessa época sob ótica intimista, na construção de seu protagonista e no estudo do personagem, para então encaixá-lo no contexto.

As roupas inexpressivas e o tom de voz gentil dão uma falsa primeira impressão do protagonista. Lou demonstra uma aptidão pelo comportamento social que sugere uma personalidade constante, vulnerável, que dá sinais de deslocamento no ambiente sem que isso o prejudique em demasia. Aos poucos, no entanto, o roteirista e diretor Dan Gilroy o desloca da ação e se concentra nos detalhes do cotidiano. Em casa, Lou mostra-se acossado pela câmera, enquadrado pelos cantos, no escuro. Sua televisão é o único foco de luz forte dali, como opressão ao resto do ambiente, um reflexo da maneira do personagem no lidar com a realidade. As múltiplas informações que cercam Lou, seja na internet ou no próprio zapear de canais na tv, estabelecem um por que para o aprendizado ágil do protagonista, não só servindo para a estrutura do roteiro como para o estudo do personagem; ao aprender tudo no observar, Lou não interpreta o que ocorre no mundo ao redor, sendo apenas uma constante reprodução distorcida daquilo que vê.

Dessa forma, a personalidade opaca se manifesta tanto na solidão quanto nas relações pessoais. É ao lidar com personagens essencialmente funcionais (o homem da loja, o cameraman rival, as vítimas de crimes filmados) que Gilroy deixa claro que a necessidade de Lou é o que molda suas ações. O visual camaleônico, que altera com economia desde trejeitos até o penteado, vai do especialista em bicicletas ao profissional qualificado em segundos; uma construção elegante, muito apoiada na alucinada atuação de Jake Gyllenhaal, que não só indica o transtorno ocasional do personagem como também comenta o rumo da sociedade do hipertexto, das informações em segundos, na qual tudo é reprodução literal e nada é interpretado de fato. O acúmulo passa a ser mais importante que o saber, e Lou entende isso.

Não por acaso, o personagem se comunica com racionalidade extrema muito porque é através de informações e estatísticas, não reflexões e argumentos, que seu discurso progride. A instabilidade emocional de Lou é consequência dessa colagem de referências que o forma, de expressões e frases prontas: ao confrontado pela força de personalidade de outro personagem, ou por alguma falha do seu próprio sistema de comportamento social, o personagem explode. O metódico atribui mecanismos para todas as ações, o que resulta numa adaptação não só física como mental. A estrutura narrativa próxima ao neo-noir é precisa para comportar essa dubiedade, uma atmosfera de mistério que não só permeia os acontecimentos como também o próprio personagem, raramente ético, mas sempre misterioso.

Talvez por ter noção plena do mistério do mundano (o que remete aos filmes de gênero de David Lynch, como Veludo Azul e A Estrada Perdida) que Lou obtém vantagem diante dos obstáculos. O poder de uma imagem é central para o jornalismo, e a evolução técnica do personagem vai toda no desenvolvimento de captura dos acidentes e na iconoclastia que é extraída dali. Chegar aos locais com uma van pode ser mais funcional, mas o ronco de um Dodge Challenger é mais imponente enquanto ícone. A imagem da família na geladeira não é tão forte diante de uma bala, mas ao juntar ambos cria-se um cenário perfeito. Essa morbidez de O Abutre vem muito do que parece comum, a curiosidade humana no grotesco que se torna mais palpável a medida que o personagem ganha tamanha consciência do poder simbólico do que está a sua volta que começa a alterar as próprias notícias; através do domínio social se alcança uma realidade que se comporte como extensão de seu eu.

É na manipulação de fatos e pessoas que Lou não só consegue seus desejos mais obscuros (estranhos prazeres à Cronenberg), na excelente cena do restaurante com Nina, como também acredita que os acontecimentos giram em torno do si. O delírio de grandeza remete a Don Quixote, e Lou tem até um Sancho Pança que questione seu poder, mas o filme se distancia da obra literária à medida que o ambiente começa a dar suporte para as ambições de Lou. Nesse sentido, o mundo passa a expressar as vontades do indivíduo.

O domínio da realidade construída por Lou não seria o mesmo caso não houvesse um palco propício para o caos urbano, embalado pela ótima trilha dissonante de um James Newton Howard evocando Trent Reznor, e em O Abutre Los Angeles parece ser o único ambiente possível para a ação. A cidade enquanto organismo vivo, sempre misterioso e em movimento, não é exclusividade do filme - talvez a obra que melhor tenha captado a impessoalidade assustadora e o acaso de LA continue sendo Colateral -, mas ganha novos contornos pela forma que o fotógrafo Robert Elswit registra o lugar. Ao optar majoritariamente por película nas diurnas e digital nas noturnas, Elswit e Gilroy não apenas criam uma iluminação singular, que capta todas as nuances de cores ao longo do dia na cidade para isolar ou integrar Gyllenhaal nas cenas, como diferenciam sutilmente o comportamento pessoal e profissional de Lou, mais a vontade e menos ofuscado pelas luzes na noite. O digital aqui é a serviço da narrativa, solução inteligente para aproximar o registro noturno com o uso das câmeras modernas utilizadas para noticiários e conseguir destoar a paleta de cores nos dois tempos. A noite de O Abutre retrata uma cidade bem diferente do ensolarado de dia.

A farsa das relações que mantém fazem Lou ganhar confiança para si mesmo, para dominar a retórica com precisão afim de se promover - e não é à toa que o terceiro ato tem mais discursos e monólogos de Lou, já que é justamente quando se livra das amarras sociais restantes para firmar a reputação. Na cena da delegacia, o personagem é enquadrado sozinho, como é observado em sua casa, mas dessa vez olha para a câmera em cena. Não é mais um estranho no espaço; tem plena noção da imagem, do que ela representa, e do que pode ser feito com ela - e isso inclui a sua própria.

Comentários (8)

Maria Stella Rennó Alckmin | sábado, 27 de Dezembro de 2014 - 16:25

Pelas críticas que li me decepcionei com o filme. O filme não prende a atenção todo o tempo e abusou demais nas questões deixadas em aberto. Bom filme, ótima atuação Gyllenhaal, mas não empolga.

Lucas Souza | sábado, 27 de Dezembro de 2014 - 22:55

Putz, pelo auê também tava esperando bem mais, até o pus na frente como prioridade...
7,5 no máximo!

Alexandre Koball | segunda-feira, 02 de Fevereiro de 2015 - 20:04

Já eu achei filmaço, se tivesse visto antes teria colocado no Top 10 fácil fácil.

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