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Críticas

Cineplayers

Nuances das nuvens.

8,5

É difícil dizer exatamente o principal foco de Olivier Assayas em seu novo trabalho, Acima das Nuvens. A princípio, a escalação do elenco chamou mais a atenção da mídia do que o filme em si, já que além da sempre brilhante Juliette Binoche, as atrizes Kristen Stewart e Chloë Grace Moretz encabeçam o cast. O interessante é que a escolha destas duas últimas atraiu exatamente os olhares de um público muito retratado no filme. Em especial Kristen, que recebe um espaço tão importante quanto Binoche, ao participar de um insight metalingüístico de vários níveis, enquanto usa sua imagem para dialogar com seus fãs teens ao mesmo tempo em que satiriza sua própria fama, trajetória e os tipos de filme que fizeram seu sucesso.

Acima das Nuvens gira em torno de Maria Enders (Binoche), uma atriz conceituada que deslanchou após interpretar, quando jovem, a personagem Sigrid, na peça Maloja Snake. Com o passar dos anos, ela acabou se enveredando pelo caminho fácil para ganhar dinheiro e se tornou uma presença de luxo em blockbusters hollywoodianos. Agora, vinte anos depois, ela é convidada por um diretor promissor a participar de uma nova montagem de Maloja Snake, só que desta vez interpretando Helena, uma personagem condizente com sua idade. Sua assistente, Valentine (Stewart), a incentiva a aceitar o papel, que é o melhor que lhe aparece em anos, mas Maria simplesmente não consegue aceitar que já é velha demais para voltar a interpretar Sigrid, uma personagem muito mais enérgica e central que Helena.

O primeiro insight de Assayas se dá quando a fictícia peça de Maloja Snake passa a ser tão importante quanto a trama de seu próprio filme, e quando Sigrid e Helena passam a se tornar as personagens mais estudadas pelo roteiro (mas, invariavelmente, um estudo que espelha Maria e Valentine). Ou seja, a peça dentro do filme é o eixo central da obra, mas em momento algum Assayas se permite adentrar por completo nela, de modo que sobrevivemos de saber apenas trechos citados pelos personagens do filme. Uma vez estabelecida essa enigmática sinergia, Maria e Valentine passam a, estranhamente, se tornarem reféns do texto de Maloja Snake, e a repetirem em suas vidas as mesmas situações vividas por Sigrid e Helena. Logo não é possível decifrar quando Valentine está apenas ajudando Maria a repassar as falas da peça e quando as duas realmente estão dialogando entre si na vida real.

O segundo insight, que acentua de vez o jogo metalingüístico e termina de dar o nó, começa quando as próprias personas de Binoche e Stewart passam a se refletir em um primeiro nível em Maria e Valentine e, em um segundo nível, em Helena e Sigrid, respectivamente. Binoche acaba por viver um pouco de si mesma, uma atriz de meia idade que surgiu promissora em diversas produções alternativas, trabalhando com diretores conceituados (como Jean-Luc Godard e Leos Carax), mas que vez por outra acabou por se aventurar no cinemão pipoca americano (como fez recentemente no remake de Godzilla). Stewart, por outro lado, só fez sucesso depois da Saga Crepúsculo, mas de vez em quando estrela trabalhos mais alternativos, como é o próprio Acima das Nuvens. Brincando com isso, Assayas pontua as falas da atriz com diversas autorreferências irônicas e satíricas, como quando Valentine defende a suposta complexidade psicológica dos heróis de filmes de ação americanos, ou quando dá risada ao receber uma proposta para que Maria participe de um “filme de terror com lobisomens”.  

Mas, ao contrário do que parece, não se trata de uma crítica desdenhosa de Assayas ao cinema comercial americano, que tanto ama combinar cenas de ação extraordinárias com certa psicologia de boteco para coroar a produção com um ar supostamente mais complexo (claro que a cena que emula os personagens de X-Men é absurdamente engraçada e temperada pelo corrosivo humor francês). Pelo contrário, ele qualifica os filmes como objetos usados de acordo com a subjetividade de cada espectador e, portanto, capazes de adquirir um significado diferente para cada um. Tendo isso em mente, as personagens a todo o tempo enxergam Sigrid e Helena de formas distintas. Na trama de Maloja Snake, Sigrid é uma jovem impetuosa, ousada, indomável, autoconfiante e sedutora, que mantém um caso com sua patroa, Helena, que é seu exato oposto, e no fim a descarta, provocando seu desaparecimento e suposta morte. Agora que envelheceu, Maria detesta o fato de que já não pode mais ser Sigrid, pois no fundo isso seria admitir que já não é mais tão jovem e avassaladora quanto ela, e sim medrosa e acomodada como  Helena. Valentine, por outro lado, prefere a sofreguidão e tragédia de Helena, mesmo que no fundo se mostre tão indomável quanto Sigrid.

Chloë Moretz surge então como um ponto de caos, interpretando a atriz escalada para viver Sigrid na nova montagem da peça. Jo-Ann Ellis é a típica celebridade-problema que causa vexames em público, é presa por dirigir bêbada, dá entrevistas escandalosas, tem fotos íntimas vazadas na internet, e vive de se promover em redes sociais. Sua escalação para viver Sigrid atrai a atenção da mídia como golpe publicitário para promover a reestréia de Maloja Snake, assim como Moretz se mostra uma estratégia de Assayas para chamar a atenção de um público que provavelmente nem sabe de sua existência. Ela acaba por concluir uma retratação interessante de Assayas sobre essa geração de celebridades instantâneas que ganham espaço enquanto outras experientes e conceituadas como Binoche se apagam, mas sem necessariamente classificar isso como bom ou ruim.   

Em dado momento, o nome Maloja Snake é explicado como sendo um fenômeno natural de nuvens que se enveredam através de montanhas, e adquirem a aparência de uma serpente em movimento. Essas nuvens traiçoeiras acabam por simbolizar a melancolia da passagem do tempo e a relação ambígua de amor e ódio entre Sigrid e Helena, entre Maria e Valentine, entre Maria e Jo-Ann, entre Binoche e Stewart, e entre Binoche e Moretz. Em determinado ponto todas as personagens/atrizes ficam suspensas, assim como Acima das Nuvens/Maloja Snake, e já não importa mais em que camada Assayas está transitando – algo parecido com o experimento do diretor com a atriz Maggie Cheung na obra-prima Irma Vep. Nesse maravilhoso insight metalingüístico, ele se reafirma como um dos mais inventivos e relevantes artistas da atualidade. Com a morte de Alain Resnais nesse ano, não seria equivocado, ainda mais depois deste filme, colocar Olivier Assayas como o nome mais interessante do cinema francês.

Visto na 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Comentários (6)

Eduardo Pepe | segunda-feira, 20 de Outubro de 2014 - 00:04

Parece muito interessante, ainda mais com esse trio. Belo texto.

Caio Henrique | segunda-feira, 20 de Outubro de 2014 - 11:46

Ótima crítica! Deu vontade de assistir

Paula Lucatelli | sábado, 13 de Dezembro de 2014 - 20:34

Um belíssimo filme que ultrapassa suas próprias barreiras e brinca com si mesmo.

Mariana Lemos Pinto | segunda-feira, 05 de Janeiro de 2015 - 16:50

Não seria nada equivocado mesmo. Binoche sempre excelente. Stewart foi uma surpresa positiva, embora ainda ache que falta. Belo filme.

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