Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

A grande comédia romântica do cinema.

8,5

Quando pensamos em Frank Capra o que nos vem em mente são sobretudo os clássicos que o cineasta fez em parceria com o roteirista Robert Riskin, como O Galante Mr. Deeds (Mr. Deeds Goes to Town, 1936), A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith Goes to Washington, 1939) e, especialmente, A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life, 1946), fábulas morais sobre a vitória do homem comum em cima dos poderosos, filmes com personagens maiores que a própria vida, edificantes e sentimentais. Antes disso, o diretor já se notabilizara com uma série de filmes muito interessantes, na primeira metade da década de 30, em que demonstrou grande talento sem recorrer ao estilo que o consagraria mais tarde. É ai que se incluem algumas de suas obras-primas esquecidas (a mais expressiva delas sendo O Ultimo Chá do General Yen [The Bitter Tea of General Yen, 1933]) ou célebres como Aconteceu Naquela Noite (It Happened One Night, 1934), um dos seus maiores sucessos.
 
Passadas cerca de oito décadas, Aconteceu Naquela Noite permanece ainda a grande comédia romântica do cinema. A trama tem sido reprisada quase que anualmente desde então, tanto no cinema como mais tarde pela televisão (basta citar A Princesa e o Plebeu [Roman Holiday, 1953], de William Wyler, para ficarmos em apenas um exemplo dentre maiores ou menores variações do seu enredo), mas o filme não perde em nada do seu frescor. Poderia ser descrito como um casal que ao se conhecer vive atazanando um ao outro até descobrirem que se amam e não conseguiriam mais viver separados, porém o filme de Capra é bem mais que isso. Uma comédia de guerra entre os sexos tanto quanto um jogo de gato e rato, é a princípio um encontro que sugere uma colaboração: Peter Warne (Clark Gable) é um jornalista pobretão que tem a oportunidade de sua vida ao se deparar com a filha mimada de um milionário que está desaparecida de casa e do pai, o que pode significar uma grande matéria; e ela, Ellie Andrews (Claudette Colbert), precisa de sua ajuda para chegar até Nova York e se casar com o noivo indesejado por sua família. Um e outro se ajudarão e explorarão mutuamente para alcançarem seus objetivos, mas Aconteceu Naquela Noite consiste todo em fazer com que seus protagonistas cheguem, ao final, indiferentes aos seus propósitos originais, e ainda capaz de nos convencer que um jornalista quase desempregado, bêbado e sem papas na língua conquiste uma garota bobinha, espirituosa e socialite. É um dos triunfos de Capra fazer com que possamos acreditar, de fato, em seus personagens e não encará-los como joguetes de roteiro iguais a alguma outra comédia romântica qualquer pouco verossímil em suas reviravoltas.

Aconteceu Naquela Noite é uma grande viagem de quatro dias e noites do par central em meio a uma América do povo, evocando em cenas externas todo um meio distante do mundo social da personagem feminina, e mais próximo do grande público e de todos nós. O percurso serve não propriamente para transformar a garota (acostumada a ter tudo o que quer, Peter faz Ellie descer do seu pedestal), mas sobretudo para ensiná-la uma coisinha ou outra sobre a vida. O filme em grande parte transcorre em viagens de ônibus ou em paradas em postos de gasolina ou hotéis em beiras de estrada (é quase um road-movie), proporcionando o encontro com figuras secundárias como trapaceiros ou cidadãos comuns, mas de alguma excentricidade, e também uma oportunidade para Capra fazer um comentário social sobre o seu país, exibindo com discrição um retrato da Depressão americana, com pessoas passando fome ou em precárias condições, mas sem verbalizar um discurso ou torná-lo o centro dos interesses do filme, como faria em alguns dos seus trabalhos seguintes de maior cunho social.

O filme de Capra não é bem uma comédia sofisticada a là Lubistch ou ligeira como as screwballs de Howard Hawks, mas existe em um universo à parte e ao mesmo tempo próximo dos exemplares do gênero realizados por esses dois cineastas na mesma época ─ que não envelheceram em nada com o passar do tempo, mas cujo estilo só se fez presente naquele período, ao contrário do de Aconteceu Naquela Noite. Capra imprime uma velocidade no ritmo e narrativa que faz com que seu filme se conserve moderno e atraente para platéias contemporâneas, e dispõe de grandes cenas e diálogos picantes (ao mesmo tempo infames e com grandes sutilezas) que confirmam que os adoráveis personagens centrais de Aconteceu Naquela Noite sejam, de fato, grande safados. Logo no começo quando se encontram no ônibus Claudette Colbert literalmente cai no colo de Gable, há piadas insinuantes como “Essa aí que você está usando para sentar é minha” e Colbert exibindo as pernas e parando o trânsito é tão ou mais sugestivo que o famoso “strip-tease” de Rita Hayworth em Gilda (idem, 1946). Além, é claro, dos lençóis pendurados que servem como uma barreira física a ser vencida entre o casal nos quartos de hotéis (as “muralhas de Jericó”), uma linha tênue a separar a consumação definitiva entre os dois, e que simboliza a tensão sexual que perpassa entre os personagens durante o filme todo (ou ainda Colbert vestindo os pijamas masculinos de Gable).

O estilo de direção de Capra não era nada arrojado, porém inegavelmente dotado de grande talento cinematográfico. As interpretações que arranca de seus astros principais (e do elenco em geral) são bastante espontâneas (bem como a interação entre todos) e até mesmo quem normalmente não simpatiza com Clark Gable aprecia a sua performance em Aconteceu Naquela Noite. O seu personagem é dos mais simpáticos perfis dos heróicos tempos do jornalismo norte-americano (que Hollywood volta e meia retratava nas telas em sua época de ouro), e corre uma lenda que a cena em que come uma cenoura com as próprias mãos ao pegar uma carona na estrada teria servido de inspiração para a criação do coelho Pernalonga. Quem duvidar do talento de Frank Capra pode até questionar algumas das visões que soam demagógicas nos filmes mais idolatrados do diretor, mas dificilmente conseguirá resistir aos encantos e passar incólume ao poder de Aconteceu Naquela Noite.

Comentários (1)

Alexandre Marcello de Figueiredo | segunda-feira, 04 de Fevereiro de 2013 - 20:29

Gostei do filme. Delicioso de se assistir. Primeira vez que assisto um filme de Frank Capra, certamente vou conferir outros.

Faça login para comentar.